segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Bem-vindo!

Esse blog é dedicado ao livro Xeques-Mate, escrito por Adônis.
Durante nove meses, capítulo por capítulo foi postado aqui com intervalos regulares. Agora, o livro já está terminado e você pode conferir cada um dos capítulos clicando sobre a data de postagem do mesmo na seçâo 'Arquivo do Blog' à direita.
Caso prefira, também pode ir navegando pelo blog através dos links 'Postagens mais antigas' e 'Postagens mais recentes' no final da página.

Para começar a ler a história, clique aqui e você será redirecionado para o Prólogo.

Um agradecimento especial à todos que acompanharam a história até o fim.

Em caso de dúvidas ou se quiser entrar em contato, deixe seu comentário ou envie um e-mail para neoadt@hotmail.com

Boa leitura!

domingo, 20 de janeiro de 2008

Epílogo

Davis abriu os olhos e, ainda cansado, tateou o interruptor para acender a fraca luz do abajur. Olhou para seu despertador que também ficava sobre o criado-mudo e se assustou ao ver que ainda eram três horas da manhã.
Tinha acordado tão fora de hora porque acabara de ter um pesadelo, o mesmo que havia tendo com tanta freqüência desde que Mellanie havia falecido. Temendo demorar pegar no sono novamente, ele se levantou e foi até a geladeira tomar um copo de água. Já voltando da cozinha, algo na rua lhe chamou a atenção e o fez olhar pela única janela que não tinha cortinas, e que, por isso, permitia uma ótima visão da vizinhança. Percebeu, então, que a casa dos Archer, em frente à sua, estava diferente, havia alguma coisa incomum nela.
Totalmente sem sono agora, Davis chegou mais perto da janela para tentar descobrir o que estava acontecendo de estranho naquela casa azul, com um lindo jardim bem cuidado e uma placa de boas-vindas dependurada na porta. Apesar de ser meio distraído às vezes, Davis notou que a enorme amoreira que florescia no jardim parecia um pouco contorcida, rígida e seca, como se estivesse sendo afetada pelo rigoroso frio do inverno. Mas como isso seria possível se eles estavam no verão?
Voltou a observar a casa. Não era imaginação sua, a construção que abrigava a família Archer não era mais a mesma que ele tinha visto há algumas horas, pouco antes de ir dormir, e essa certeza fez Davis subir as escadas para vestir o seu roupão e examinar mais de perto a casa azul.
Desde pequeno, Davis Blame sempre gostou de acontecimentos que desafiassem o seu raciocínio lógico, porém, mais do que isso, uma mudança real quase imperceptível em uma casa, em somente algumas horas, estimulava totalmente a sua vontade de conhecer detalhes do acontecido.
Cinco minutos depois, Davis estava descendo as escadas em direção à porta, quando o telefone tocou. Uma breve olhada no relógio de parede o certificou de que ainda não eram mais que três e dez da manhã. Preocupado, subiu correndo as escadas de volta, mas quando entrou no quarto o telefone havia parado de tocar. Droga, pensou, enquanto aguardava para ver se a pessoa ligava de novo. Não ligou, pelo menos não nos dez minutos seguintes e por isso Davis achou desnecessário ficar esperando por mais tempo e saiu de casa, para verificar a casa em frente.
O silêncio da madrugada na rua onde o rapaz morava se fazia perceber naquele momento quando não havia sequer um automóvel passando. Davis estava acabando de atravessar a rua, quando uma luz que se acendeu subitamente na casa dos Archer o deteve. Era a luz da sala de estar. Se tivesse parado um instante para refletir, Davis iria pensar que estava ficando paranóico, saindo de casa de madrugada para procurar algo de estranho em uma casa aparentemente normal. No entanto, não parou. Muito pelo contrário, ele lentamente prosseguiu cada vez mais em direção à janela onde a luz acesa era visível. Ao chegar lá espiou através do vidro; não havia ninguém. Estava tudo quieto e silencioso. Muito silencioso.
Ele ficou durante alguns minutos esperando algum movimento, mas tudo na sala estava imóvel à luz do delicado lustre dependurado no teto. Exausto, o rapaz começou a considerar tudo aquilo uma perda de tempo e decidiu retornar à sua casa.
De repente, um bip começou a soar ao longe. Bip... bip... bip...
Davis forçou os olhos para enxergar melhor através da escuridão da rua e tentar descobrir a origem do apito, mas não havia nada aparente que parecesse emitir o barulho. Ao dar uma última olhada pela janela da casa azul, se deparou com a filha mais nova dos Archer, Isabelle, de 17 anos, encarando-o através do vidro com uma expressão fantasmagórica e um dedo pálido apontando para frente, na direção da casa de Davis.
Ele, assustado, olhou para sua própria casa, somente a tempo de vê-la explodir e fazer tudo o que estava por perto voar pelos ares após o bip dar seu décimo e último suspiro.
E antes que ele pudesse reagir ou gritar o nome de sua filha, veio a compreensão. Nada daquilo era real. Yasmin estava a salvo dentro de uma casa que, na realidade, estava intacta.
Era tudo ilusão.
De repente, tudo ficou branco.
Algum tempo depois, Davis acordou.
Não sabia se sentia desespero, medo ou aflição. Somente continuou deitado onde estava, sem se mover. O único barulho que escutava era o mesmo que ouvira anos atrás, da última vez que estivera naquele lugar.
E ele não precisou abrir os olhos para entender.
O jogo havia começado novamente.

FIM

Capítulo 43 – Xeque-Mate, parte II

- O que pensa que esta fazendo, Davis? – perguntou Mellanie, se levantando de um salto.
- A recompensa. Prometeu-me algo e eu a quero agora.
- Ora, você está vivo! Há recompensa maior do que essa?
- Será mesmo que estou? – ele indagou. - Será que vale a pena viver com a culpa de ter arruinado dezenas de vidas?
Mellanie deu uma risada desdenhosa.
- Ah, você não se importa realmente com isso, importa?
- Me importo com a minha recompensa. Onde está?
- Eu tenho um pouco de ouro em…
- NÃO QUERO A PORCARIA DO SEU DINHEIRO! Disse que era algo melhor e eu o quero! Ou senão meto uma bala no meio da sua cabeça!
Ela recuou, apoiou-se na cadeira. Parecia assustada. O riso zombeteiro havia desaparecido de seu rosto para dar lugar a uma expressão de choque e quase medo. No entanto, continuou em pé, encarando-o.
- Você não seria capaz de atirar em mim, Davis.
- Duvida?
E antes mesmo que ela pudesse responder, Davis apertou o gatilho e uma bala foi disparada direto contra a perna direita dela. Do orificio acima do joelho começou a escorrer sangue e Mellanie gritava enquanto caia no chão.
- Agora cale a boca! Em um minuto meu revólver vai disparar novamente e, dessa vez, estará apontado para o seu coração podre. Só há um jeito de evitar isso, e é me dizendo onde está a minha recompensa.
A mulher de cabelos negros, com alguns fios grisalhos, estava sentada no chão frio, gemendo, com as pernas estiradas. Resolveu dizer, por fim:
- Davis… lembra-se de quando nos separamos? Há anos atrás?
Ele assentiu com a cabeça.
- Bem, eu estava…. estava… g-grávida!
E, pela primeira vez, ele viu Mellanie chorar.
Supôs que talvez não fosse por ressentimento, mas de revolta por estar sendo obrigada a revelar tudo.
E ele não sabia o que dizer.
- Você abortou?
Questionou com esforço.
- N-Não.
- Não?! – ele repetiu, pasmo.
Ela sacudiu freneticamente a cabeça para os lados.
- Assim que ela nasceu...
- Ela?
- Sim, é uma menina. Assim que ela nasceu, a doei para um orfanato. Até hoje não sei porque sofri nove meses por aquilo.
Sem conseguir se conter, ele bateu com o revólver no rosto de Mellanie, que também começou a sangrar.
-AQUILO? NÃO FALE ASSIM DA MINHA FILHA! ELA É QUEM FOI MUITO INFELIZ DE TER NASCIDO DE ALGUÉM COMO VOCÊ!
- E como você! – retrucou. - Esqueceu que é tão assassino quanto eu?
- Pode ser, mas eu não sou um psicopata. Duvido que tenha olhado na cara dela por mais de um minuto.
Mellanie abaixou a cabeça, fingindo ressentimento.
- Na verdade, só a vi de relance.
O homem sentiu um calor se apoderar de seu corpo e teve vontade de lhe bater novamente, mas se conteve.
- Onde é a deixou?
- Em Paris. Fui para lá quando me deixou. Assim que soube que estava grávida, pensei em te procurar, mas não tinha mais dinheiro para voltar a Scacci e, muito menos, para cuidar de um bebê.
Ele não demonstrou piedade. Não lhe importava agora o passado, queria saber mais sobre a filha que era sua também.
- Como se chama o orfanato?
- Dá-me um papel que te anoto o nome e endereço do lugar. Pode pegar sua maldita filha e faça o que quiser com ela.
Mais uma vez, Davis tentou dominar seus sentimentos, pegou um pedaço de papel e uma caneta na gaveta da velha escrivaninha.
Enquanto Mellanie rabiscava algo em francês, Davis perguntou:
- Como ela se chama?
- Yasmin, acho. Foi uma das enfermeiras que lhe deu esse nome.
- E quantos anos tem?
- Dois.
- Pretendia me contar isso tudo algum dia, infeliz?
- Talvez. Não faz muita diferença, não é? – ela disse. - Não estava feliz mesmo sem saber que tinha uma filha?
- Cale a boca.
Davis pegou o papel e o colocou no bolso. Depois, fitou os olhos quase sem vida da mulher a sua frente.
- Por que eu? Por que você tinha que escolher justo a mim e estragar a minha vida?
- Por que eu te amo!
Davis riu. Uma risada audível e cínica.
- Como você pode ser tão falsa? Como consegue conviver com isso, dormir a noite sabendo que todo dia coloca uma máscara e encena uma peça de fingimento e crueldades para quem quiser ver? Você nunca amou ninguém, Mellanie. Não sabe o que é o amor e nunca saberá.
Davis mantinha a arma segura em suas mãos, que começavam a suar.
- Por favor, não me mate, Davis! – ela implorou em tom desesperado. – Por favor!
- Sabe, Mellanie, eu cometi muitos erros em minha vida, mas o pior deles, o pior, foi ter sido tão cego a ponto de me relacionar com uma pessoa imunda como você.
“Espero que a nossa filha nunca se torne metade do que a mãe é.”
Ela lacrimejou. Gemia e soluçava, tentando inutilmente amenizar a dor de suas feridas tampando-as com as mãos.
“Agora pare de choramingar. Até mataria a mulher que me envolveu em tudo isso, mas jamais tiraria a vida da mãe de minha filha. Antes que eu me vá, preciso saber uma coisa: por que, afinal, me deste o codinome de ‘coelho’?”
Os dois se olharam. Parecia ser uma pergunta irrelevante naquele momento, porém ele tinha curiosidade e não pretendia ver Mellanie nunca mais.
Ela inspirou o pesado ar da sala escura algumas vezes antes de responder:
- A todos intrigam essa questão, não é? Bom, há vários motivos elementares. O coelho é um animal bastante curioso. É esperto, ágil e é capaz de ver atrás de si sem mover o pescoço. No entanto, há um motivo pessoal pelo qual escolhi seu codinome como sendo Kaninchen.
“Há pouco mais de dois anos, entramos em uma horrível tenda azul.”

* * *

Davis e Mellanie estavam sentados um ao lado do outro em desconfortáveis banquinhos.
- Qual suas datas de nascimento – o velho perguntou.
Os dois falaram. Ele assentiu e passou a consultar uma grande tabela que mantinha ao seu lado repetidamente.
- Bem – pigarreou, e olhou para Mellanie – Seu signo é Peixes, e, no zodíaco chinês, é um imponente Dragão.
Atualmente tem tido muita sorte no amor e também financeiramente. No entanto, em breve, uma desgraça se abaterá sobre ti.
Ela pareceu assustada, mas Davis não reagiu.
- Você, meu caro, é do signo de Leão. No zodíaco chinês, seu animal é um Coelho. Também tem sido afortunado nos relacionamentos amorosos e tem um futuro brilhante. Infelizmente, temo que não viva até os cem anos.
Davis fez uma falsa cara de lamúria e agradecimento por tudo que lhe dissera.
Quando eles permaneceram ali, sentados, esperando que o homem lhes dissesse mais alguma coisa, ouviram:
- Vão com Deus, mas vão logo que tenho outros clientes esperando. Bem, a não ser que queiram seu signo gravado em um pequeno grão de arroz...
Antes que o velho continuasse, Davis se levantou rapidamente e puxou Mellanie pelo braço.
Quando já estavam fora da tenda abafada, ele suspirou:
- Não acredito que me fez gastar dinheiro para ouvir isso.
- Ora, Davis, são só 50 centavos!
- Cinqüenta centavos por algo que eu vejo de graça em uma biblioteca.
- Bom, mas os livros não te dizem sem futuro, não é?
- Ah, é verdade – respondeu, em tom zombeteiro. – Finalmente fiquei sabendo que vou morrer um dia. Que estraga prazeres....
Mellanie riu. Não era uma risada maléfica. Davis suspirou.
- E ainda por cima sou do signo de Coelho. Entre tantos outros bichos mais imponentes, tinha que ser justo um bichinho como o coelho?

* * *

Conforme se recordava da cena, Davis se lembrava de como Mellanie não parecia tão maníaca e obsessiva naquela época, há alguns anos.
- Lembra-se?
Davis não precisou responder. Pelo seu olhar distante, a mulher sabia que ele se lembrava.
- Foi principalmente por isso que lhe dei esse codinome.
Calaram-se. Ele perguntou sem muito interesse:
- Por que em alemão?
- Um amigo de meu pai vinha da Alemanha. Ensinou-me algumas palavras, principalmente nomes de animais.
Novamente, ficaram em silêncio.
Relembrar aquele passado, aquela época em que compartilhava sua vida com a mulher agora caída a sua frente, lhe dava nostalgia. Ele segurou a cabeça com as mãos, sem soltar a arma.
Algumas memórias correram em sua mente mais uma vez. Desde a época que namoravam até os assassinatos que provocara dias atrás. Mellanie continuava ali, parada, encarando-o com um olhar frio.
- Já basta, nunca mais quero voltar a vê-la!
Quando ele se virou, preparando-se para sair, viu, com o canto dos olhos ela se esticar para agarrar alguma coisa escondida pelas sombras do aposento.
Virou-se de imediato e encontrou o cano de um revólver apontado para seu peito.
- Não é fácil assim, Davis. Nunca atiram na minha perna ou me batem e depois vão embora.
- Você não seria capaz...
Ela puxou o gatilho. Silêncio. O barulho seguinte não foi o disparo de uma bala, mas a risada de Davis.
- Tola, não está carregado!
E ele apontou novamente seu revólver para o peito dela. Um súbito acesso de compreensão invadiu o corpo de Mellanie e suas pupilas se contraíram.
- Agora você foi longe demais. – disse ele. - Você é a própria culpada por me fazer mudar de idéia. Não é verdadeiramente a mãe de minha filha. Não passa de um verme repugnante e covarde esparramado no chão. Isso será melhor tanto para você quanto para mim
- Não, Davis. Nã...
A última letra foi engolfada pelo som de três disparos. O homem mantinha sua arma em punhos, prestes a atirar de novo se fosse preciso.
Contudo, era desnecessário.
Aquela mulher cujo corpo estava banhando com seu próprio sangue nunca mais se moveu.

* * *

Meia hora depois, Davis estava só naquela cidade. Somente um sobrevivente. No entanto, sobre o tabuleiro ainda havia duas peças e isso o intrigava.
Mais do que isso, o enlouquecia.
Em um acesso de fúria, tentou, em vão, arrancar um dos reis da estátua.
Com uma pedra, tentou quebrar o tabuleiro ao meio, mas também foi inútil.
Então, do nada, uma idéia lhe ocorreu.
Como já havia feito várias vezes naquele dia, ele sorriu.
Achava que alguém estava sendo generoso com ele, indicando-lhe o caminho.
Talvez, pensou, o Deus nórdico que controla o tabuleiro resolveu me ajudar.
Com uma pequena pedra com pontiaguda, ele fez um corte em seu braço direito. Deixou que um pouco de sangue escorresse e pingasse sobre o tabuleiro, manchando o centro de um vermelho escuro. Nada aconteceu.
Enfurecido e frustrado, ele se sentou no nódulo da raiz de uma grande árvore e fechou os olhos. Só os abriu segundos depois e aí, então, teve uma surpresa: havia somente um rei no tabuleiro. O rei negro. E ele estava em sua devida posição inicial.
Algo se iluminou no interior de Davis.
Todas as dezesseis pessoas que chegaram à cidade há mais de três semanas haviam morrido. Todas.
O que restara de Davis era o que o iria comandar daí por diante.
E ele concluiu que aquele jogo de xadrez havia, realmente, mudado sua vida para sempre.


segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Capítulo 42 - Xeque-Mate, parte I

"(...)Subitamente um Coelho Branco com olhos cor-de-rosa passou correndo perto dela.

Não havia nada de muito especial nisso, também Alice não achou muito fora do normal ouvir o Coelho dizer para si mesmo ‘Oh puxa! Oh puxa! Eu devo estar muito atrasado!’ (quando ela pensou nisso depois, ocorreu-lhe que deveria ter achado estranho, mas na hora tudo parecia muito natural); mas, quando o Coelho tirou um relógio do bolso do colete, e olhou para ele, apressando-se a seguir, Alice pôs-se em pé e lhe passou a idéia pela mente como um relâmpago, que ela nunca vira antes um coelho com um bolso no colete e menos ainda com um relógio para tirar dele. Ardendo de curiosidade, ela correu pelo campo atrás dele, a tempo de vê-lo saltar para dentro de uma grande toca de coelho embaixo da cerca.

No mesmo instante, Alice entrou atrás dele, sem pensar como faria para sair dali.

A toca do coelho dava diretamente em um túnel, e então aprofundava-se repentinamente. Tão repentinamente que Alice não teve um momento sequer para pensar antes de já se encontrar caindo no que parecia ser bastante fundo.”

(Capítulo 1, Alice no País das Maravilhas - Lewis Carroll)

* * *

Kaninchen abriu os olhos.

Vislumbrou com satisfação que a alguns metros de si um homem jazia morto. Enfim, o ciclo havia se encerrado novamente.

Após muitas frustrações, desesperos silenciosos e insônias, a missão havia sido concluída com bastante êxito. E, apesar de alguns detalhes às vezes não saírem como planejado, sempre havia sido possível contorná-los e, no final, ele ganhara o jogo.

As únicas peças que deveriam restar eram os dois reis. Por via das dúvidas, resolveu averiguar se só haviam duas peças esculpidas.

Levantou-se e riu da encenação de que havia sido atingido por uma bala. Sua risada ecoou pela cidade deserta.

Reconheceu que mentir para o outro até o fim de sua vida fora demasiado dispensável e insano. Mesmo assim, estava feliz consigo mesmo.

Descobrira que era capaz de coisas que nunca imaginara, tinha um potencial invejável. Como estava perto da praça, não precisou andar muito. Mesmo assim, ele ia devagar. Queria desfrutar da sua situação de sobrevivente; sobrevivera a si próprio, sobrevivera ao jogo.

Enquanto caminhava, distraiu-se com suas reminiscências. Deixou-se levar pois sabia que tinha todo o tempo do mundo e nunca estivera calmo o suficiente para se deixar mergulhar nas lembranças do dia em que chegara àquela cidade. Sua mente retrocedeu quase três semanas atrás...

* * *

Davis estava a dois quarteirões de sua casa. Distraído, nem se dava conta de caminhar; somente colocava um pé na frente do outro e seguia até a sua moradia. Pouco antes de chegar, inspirou algo mais rarefeito que o ar, mas nem se deu conta. Seu pensamentos não o deixavam. Willard espreitava-o escondido e observava enquanto Davis respirava o gás alucinógeno que saia de um pequeno dispositivo encostado ao meio-fio.

Cerca de um ou dois minutos depois, estando a algumas casas antes da sua, viu sua própria habitação explodir. Soltou os papéis que segurava, deixando-os ao relento, e, de repente, tudo ficou branco.

E ele não se lembra de mais nada.

Após a explosão uma estranha luminosidade atingiu-o nos olhos e ele mal conseguia ver o que estava a sua frente. Quando recuperou sua visão, não conseguiu reconhecer nada que estava a seu redor. Ele olhava desesperadamente para todos os lados para ver se reconhecia alguma casa ou algum lugar familiar, mas foi em vão.

Foi quando Davis avistou um velho senhor francês que, mais tarde, mataria com um tiro. A primeira coisa que este lhe disse foi:

- É inútil, você não está onde pensa estar...

Naquela noite, ele se aglomerava na praça com mais dezesseis pessoas tentando descansar. Estava quase dormindo quando alguém o sacudiu e uma voz conhecida sussurrou:

- Não tenha medo. Venha!

Ele foi. E a decisão de ir mudou sua vida para sempre.

Como estava escuro, não podia distinguir o vulto que o conduzia ao seu lado. Suspeitando que fosse alguém de seu grupo, mas sem se importar verdadeiramente quem era, ele não cessava as perguntas:

- Quem é você? Aonde está me levando? O que está acontecendo?

Mas continuava seguindo-a.

Assim que chegou a uma casa fracamente iluminada, e eles adentraram-na, pôde ver quem era sua guia.

Davis demorou aceitar que estava próximo a ela novamente. Imaginara que nunca mais a veria.

- Mellanie... - disse ele baixinho.

- Wert. Me chame assim - ela respondeu.

- O que está fazendo aqui? O que eu estou fazendo aqui?

- Calma, Davis. Aos poucos, vou respondendo suas tantas indagações. Não é isso que importa agora.

- E o que import...

E antes que ele pudesse concluir a pergunta Wert o interrompeu:

- Você foi trazido para essa cidade com uma missão e tem que cumpri-la. Estamos próximos à fronteira da França com a Itália, em uma cidade abandonada há décadas. Há uma história a respeito de uma lenda - que lhe contarei depois - e que diz que, de tempos e tempos, a estátua que você viu na praça exige que sangue humano seja derramado aqui.

Davis estava assustado, mas escutava atento cada palavra.

“E enquanto isso acontece, o tabuleiro joga com as peças. Eu acredito que você faça parte desse jogo como o rei.”

- Qual dos dois? - indagou, surpreso.

- Os dois. Portanto, sua tarefa como rei, é eliminar todas as outras peças.

- Como?

- Assassinando quem elas representam.

- Quem são?

- Os dezesseis de seu grupo e outros dezesseis de um outro grupo que está escondido aqui na cidade.

Davis ficou calado. Há um dia atrás estava somente retornando a sua casa e agora estava incumbido de matar mais de trinta pessoas.

- E sobre o homem que vimos morrer hoje? - ele perguntou.

- Isso é irrelevante. Depois te contarei tudo.

- Tenho que matar todos agora?

- Não, não! Matará a todos, mas aos poucos. Vou te instruir melhor amanhã, porém daqui algumas horas já deverá assassinar alguém.

O homem sorriu.

- Bem, infelizmente para você, não irei matar ninguém. Realmente acha que participarei desse joguinho? Só por que já estivemos juntos? Eu não sinto mais amor por você, Mellanie, sinto repugnância, ódio.

E quando ele se levantou fazendo menção de ir embora, ela lhe apontou um revólver.

- Acho que você não entendeu muito bem, Davis. Não é uma escolha.

- Quer dizer que se eu não aceitar, vai me matar? - desafiou ele.

- Eu não. Por mais que também sinta raiva, não sei se seria capaz de atirar em você. Talvez seja, mas não o farei se não for necessário.

“Todavia, o tabuleiro não poupa esforços para punir os que o desobedecem.”

- Do que você está falando? Você está louca!

- Me escute, que será melhor pra você. Te explicarei tudo com o tempo; o que tem que saber é que, se o tabuleiro lhe escolheu para ser o rei, você não pode sair da cidade e tampouco escapar de seu destino. Minha irmã, Megan, também não acreditava e acabou morta pelo jogo.

- Esquece... - disse, e deu mais um passo em direção a porta.

Ela colocou o dedo no gatilho.

- Espere! Você já foi escolhido, não há volta. Se para te convencer, necessito algo mais do que lhe dizer que sua vida está em perigo, lhe prometo uma recompensa.

- Qual? Dinheiro? Não, obrigado.

- Não, não é dinheiro. É algo muito melhor.

- Mellanie, eu...

- Wert! Já te disse para me chamar de Wert!

- Já te escutei, Mellanie. Só que eu não sou assassino. Não sou maníaco como você!

- Mentira! Nós dois sabemos que a morte daquele casal não foi acidente.

- Do que está...?

Wert retrucou:

- Você sabe muito bem. Há alguns anos. É capaz de qualquer coisa para salvar sua vida, não?

Davis fitou-a. Mellanie retribuiu o olhar desafiador.

Ela havia lhe prometido uma recompensa e ele não se esqueceria. Quando chegasse a hora, ele iria lhe cobrar...

* * *

Davis voltou sua atenção ao tempo presente. Estava já em frente a estatua que continuava a mesma; exceto pelas peças. Como previsto, só haviam dois reis. Cada um em sua posição inicial, parecendo se encarar.

O advogado não sabia mais o que fazer: deveria matar a si mesmo para que uma das peças comesse a outra? Se a resposta fosse afirmativa, Davis decidiu que preferia que os dois continuassem ali, fincados, jogando.

Ficou olhando para a estátua.

Duas pessoas jogando, uma delas sem busto. Nunca ninguém de seu grupo soube que a outra pessoa era uma mulher. Era Wert, e ela mesma dissera a Davis.

Toda vez que o jogo pedia mortos, haviam dois jogadores para comandar o jogo. Para que comandassem mesmo os reis. E, dessa vez, um dos jogadores era Wert.

O adversário, Davis não sabia se era ele, Willard ou um outro alguém. No entanto, gostava de crer que era ele. Ele mandando nele mesmo. Dono de suas próprias decisões, culpado por seus próprios homicídios.

Por algum motivo, Davis olhou para a esquerda e viu vários montes de terra. Os túmulos. Ali jaziam doze corpos, todos assassinados brutalmente. Agora, enquanto seus órgãos eram decompostos debaixo da terra, Davis observava-os impune. Encostou-se em uma árvore e começou a relembrar a morte de todos. Um a um, os últimos momentos da vida dos mortos iam passando em sua mente e lhe causando uma espécie de felicidade.

Começou por Ian e seguiu, até chegar ao bispo. Então, parou. Prendeu a respiração involuntariamente, fechou os olhos e a última vez em que vira o bispo vivo lhe veio à mente.

Lembrava-se de que estava no Ravintola, organizando as camas improvisadas, quando notou que o bispo saira do restaurante há alguns minutos. Logo que pôde, foi discretamente atrás dele. Assim que Davis o avistou, chamou-lhe numa altura que só os dois poderiam ouvir e, sob a claridade da lua, o viu fazer um gesto. Um gesto que congelou em sua mente e que agora o preocupava: colocara algo dentro de sua batina.

Davis levantou-se subitamente, dispersando a névoa de lembranças que o cercava, e correu até o túmulo do bispo. Começou a cavar.

Durante meia hora ele cavou, até que metade do cadáver estivesse visível. Davis desejou que, independente do que fosse que o religioso havia escondido, ainda estivesse lá.

Ele, então, apalpou, desconfortavelmente, o lado de dentro das vestes e sua mão tocou em um papel. Retirou-se de perto do corpo e se sentou para ler.

O papel estava corroído em algumas partes, porém era visível em sua maioria. Davis não estranhou que ainda existisse o papel: nada mais o espantava naquela cidade.

Começou a ler. Não demorou a perceber que era uma carta.

Lia as palavras com desinteresse, porém se surpreendia. Era a respeito de uma garota de quatorze anos, filha do bispo Di Ravenna. Marcela; era como a menina se chamava.

Na carta, ele dizia que enviava bastante dinheiro que havia recebido recentemente e perguntava como estava o delicado estado de saúde da menina que tinha seu sangue. E, no final, dizia cautelosamente que iria até Lisboa visitá-la. Não conseguiu embarcar no vôo que o levaria a Portugal e, nem ao menos, despachou a carta.

Talvez não tivesse tido coragem, ou talvez se arrependeu de enviar tanto dinheiro.

Enfim, o maior segredo do religioso era aquele: uma carta de um fiel à igreja a uma mulher falando sobre a filha dos dois. Não teve tempo de escondê-la onde planejava e seu segredo agora fora revelado à uma pessoa que não estava preparada para entendê-lo.

Assim que terminou de ler a carta, Davis amassou o papel e olhou para o rosto cadavérico do bispo. De relance, observou um pequeno verme azulado aparecer pelo lado direito da face do cadáver e sumir por uma das cavidades das narinas. Deixara a infeliz menina órfã de pai. Uma pontada de remorso transpassou seu corpo, mas desapareceu tão subitamente quanto surgiu.

Uma parte de si lamentava tantos mortos inocentes, mas, por outro lado, conseguira salvar sua vida.

Ele sorriu. Não sabia exatamente o porquê. Estava confuso: feliz por ter finalizado, porém com um íntimo desejo de que não houvesse começado jamais.

Contudo, ele não se lamentava. Sabia que nada poderia mudar o que já havia sido feito e nenhum daqueles defuntos à sua frente retornariam à vida.

Agora, cansado de tantos conflitos mentais, se pôs de pé e foi cumprir seu último dever. Cinco minutos depois, chegou a casa de Wert e bateu à porta. Imediatamente ela correu para abri-la.

- O que aconteceu? - foi a primeira coisa que ela indagou. - Você nunca bate à porta.

- Não importa. Está tudo acabado, Mellanie - disse, enquanto adentrava e ouvia a porta sendo fechada atrás de si.

- Já te disse para não me chamar assim...

- Você não escutou o que eu disse? Acabou! Não há mais ninguém além de eu e você nesta maldita cidade!

- E Gary?

Ele se sentou.

- Morto, estirado no meio da rua.

Mellanie sorriu.

- Então é verdade? – Ela deu um longo suspiro e também se sentou. – Ah, então todos os deveres foram cumpridos.

Davis levantou-se repentinamente e apontou sua arma para a moça.

- Na verdade, nem todos.


(Continua...)

As últimas postagens: a Segunda Parte do Capítulo 42 e o Epílogo serão publicadas juntas e excepcionalmente no sábado, dia 19.


quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Capítulo 41 – O Fim

"A última cena é sempre trágica, pouco importa quão felizes tenham sido as outras: um pouco de terra é jogada por cima de nossa cabeça e é o fim para todo o sempre."

(Blaise Pascal)

* * *

Assim que o sol nasceu naquela manhã, Samantha já havia se levantado. Não demorou para notar o sumiço de Jacques, mas não teve tempo para chorá-lo: tinha que sair o mais depressa possível de perto de Gary e Davis.

Um dos dois, ela sabia, estava jogando a partida de xadrez e estava destroçando a vida de dezenas de pessoas em troca de sua própria. Desde o começo, um por um foram desaparecendo. Ian, o bispo Di Ravenna, Lisa, Melina, Luis Filipe, Nicholas, Johann, Lin, Jacqueline, Joanne, Anthony, Susan, Edwin e agora Jacques.

E a mesma coisa se sucedia com o outro grupo. E os reis, branco e perto, riam em seus tronos enquanto comiam friamente cada peça do jogo.

Há mais de duas semanas, quando Samantha se deitara em sua cama em Scacci imaginando o quão desastroso havia sido seu encontro, não imaginou que sua vida mudaria drástica e mortalmente a partir daquele dia.

Agora ela corria. Fugia do desconhecido, de um homem de quem não sabia a identidade, porém poderia estar prestes a descobrir.

Era bem cedo e a arqueóloga ia desesperadamente em direção à casa que uma mulher argentina queimara dias antes. Samantha ainda segurava nas mãos um bilhete todo amassado que continha a caligrafia de Jacques: “Assim que ler isso, vá à casa em que Melina morreu. Creio que lhe será útil.”

Foi a última coisa que o francês escreveu. Depois de rabiscar em lousas e cadernos tantas fórmulas, números e teorias, seu escrito final fora um aviso para Samantha. E isso lhe dava forças para prosseguir porque demonstrava que, no fim de sua vida, o físico acreditara nela.

A moça não tinha idéia de o quê iria encontrar lá ou de quando o velho francês havia escrito o bilhete, contudo não se preocupava pois essa poderia ser sua última chance de sobreviver.

Nenhum outro pensamento parecia lhe vir a cabeça, toda sua mente estava direcionada para um só objetivo: alcançar a casa de Melina.

Quando chegou ao local, mal se agüentava em pé. Tampouco sabia por que havia se apressado tanto, já que, aparentemente, ninguém a estava seguindo. Porém, não se importava. Abrindo a porta da casa abarrotada de cinzas, Samantha não viu nada que a ajudasse.

Somente quando a moça fechou a porta é que uma luz no fim do túnel se acendeu. No momento em que ela viu de soslaio algo brilhando na cozinha, se apressou até o cômodo.

Estancou-se em frente à parede descascada e vislumbrou uma frase escrita com uma fraca tinta verde. Dizia: “O assassino é...”, e o resto havia sido retirado por Kaninchen. Todavia, ainda se podia ver um pequeno pedaço da identidade do homicida. A última letra. E quando Samantha distinguiu qual era, soube o nome verdadeiro de Kaninchen e seu coração deu um salto.

Olhou novamente. De súbito, entendeu o erro do assassino: a tinta só era visível no escuro. Provavelmente, quando Kan chegara a casa o incêndio já havia começado e o fogo clareava grande parte da frase, deixando boa parte da mensagem invisível. Entretanto, parte de seu nome devia estar mais fracamente iluminado e, por isso, era aparente. Ela não precisou procurar muito para achar uma caneta verde especialmente para a escuridão jogada em um canto.

Lembrava-se vagamente de Melina ter lhe dito que estava com uma caneta desse tipo no bolso na noite em que fora transportada de Scacci. No entanto, não podia ter certeza pois sua mente teimava em não funcionar, voltava suas atenções no ato de correr, fugir e escapar da morte.

Em sua concepção, Melina haver trazido a caneta não podia ser coincidência. Samantha imaginava que seria uma chance a mais que o destino lhe dava. Sabia quem era o assassino e iria tentar sair da cidade sozinha.

Agora que ela sabia de tudo, parecia ser mais fácil de escapar, porém era tarde demais.

Logo que Samantha saiu da casa chamuscada, Kaninchen a estava esperando escondido no lado de fora. Quando a arqueóloga começou a correr, sem perceber que havia um homem a observando, ele saiu de seu esconderijo e em poucos passos a alcançou.

Samantha, então, sentiu seu corpo ser puxado para trás pela garganta e sentiu algo cortando seu pescoço. Kaninchen passara uma linha cortante sobre sua cabeça e agora a puxava para si, enforcando-a, sufocando-a, tirando-lhe a vida.

Ela tentava gritar e se libertar, mas era inútil. Estava lutando contra a morte.

A moça conseguiu se virar o suficiente para encarar os olhos do seu assassino e viu, por fim, a frieza que havia neles. Pouco a pouco ela ia se sentindo cada vez mais livre, sua mente agora não se relutava mais a nada e milhares de pensamentos e lembranças passaram diante de seus olhos.

E, de repente, tudo pareceu parar. O tempo esperou enquanto o coração de Samantha batia pela última vez e ela caia de joelhos da rua. Sem oxigênio. Sem vida.

Estava tudo acabado para ela.

Kaninchen nem se deu ao trabalho de enterrá-la: o corpo de Samantha permaneceu ali, sobre os ásperos paralelepípedos, seus olhos revirados e seu longo cabelo cobrindo como uma cortina seu rosto sem expressão.

* * *

Um bispo. Era a única peça que restava para Kaninchen atingir seu objetivo. Após dias e dias matando pessoas a sangue frio, lhe restava somente um.

Acabaria com toda a farsa e mataria o outro de uma vez, ou jogaria com ele também? Decidiu-se pela segunda alternativa. Já até havia preparado a armadilha, não seria sensato desistir agora.

Mudou então seu percurso e seguiu para a casa de Wert.

- Que faz aqui? - questionou ela quando Kaninchen adentrou pela porta.

- Samantha já se foi. Falta o outro, e quero brincar com ele.

- Por que não acaba com tudo isso de uma vez? Dê um tiro e tudo estará terminado!

- Poderia ter feito isso com todos, no entanto, isso é um jogo. E eu quero me divertir.

Dito isso, Kaninchen pegou sua arma e saiu.

Kan não precisou nem ao menos ir ao abrigo em que o outro dormira para se encontrarem: este estivera tentando sair da cidade e Kaninchen o avistou perto da praça.

- Então é você! Estava me procurando?

O outro relutou. Não sabia se continuava correndo ou encarava o assassino de uma vez.

- Sou eu o quê?

- Você é o Kaninchen! O assassino...

- Do que está falando? Você é o assassino, seu desgraçado!

Os dois agora se encaravam. Estavam a quatro metros de distância.

- Você é o carrasco nessa cidade!

- Pare com isso, pare com esse joguinho. Sabe que matou todos os outros!

Davis e Gary ofegavam.

- Você é o Kaninchen! – acusou Davis.

- Eu? Como se atreve...? – começou Gary.

- Mas que idiotice é essa, hein?! Quer me matar também, assim como matou Samantha, não quer?

- Chega, não vou mais suportar isso! Você tirou a Jacqueline de mim e...

- Gary - falou o advogado - você tirou a Jackie de você mesmo. Você a matou porque ela era somente uma diversão e, depois de um tempo, você se cansou.

- Mentira!

E quando Gary sacou seu revólver, Davis fez o mesmo.

O rosto de Kaninchen se irradiou: havia deixado uma arma sem munição próximo a cama de seu adversário, pois já previra essa reação. Tudo estava meticulosamente planejado.

Uma das armas estava cheia de balas e na outra não havia nenhuma.

Aos poucos, Davis começou a se afastar do outro. Gary continuava com sua arma em punho.

- Não fuja! – gritou.

Agora, a distância entre eles era bem maior: estavam afastados por vários metros. Mesmo assim, ninguém correu. Os dois precisavam cumprir seus objetivos, sua missão.

E, como se houvesse sido combinado, ao mesmo tempo eles apertaram o gatilho. Ouviu-se um tiro, somente um.

Silêncio momentâneo. Um deles caiu. Davis.

Assim que viu o outro caído, Gary ficou sem reação.

Em um segundo, reviu toda sua vida. Lembrou-se da sua infância, da morte de seu pai, da doença de sua mãe, de quando seu tio o levara para morar com ele em uma casa no litoral, do dia em que decidiu ser oceanógrafo, de quando sua mulher o abandonara...

Toda sua dor desapareceu. Não precisava mais se preocupar com o tabuleiro, pois tudo estava acabado. A peça se encerrara e a platéia aplaudia enquanto o acortinado vermelho se fechava.

De repente, um gancho o trouxe de volta para a realidade: Gary sentiu uma dor latejando em seu corpo e tomando conta de sua capacidade de resistir.

E, quando não agüentou mais, Gary caiu de cara no chão.

Era o fim.


(Continua...)

Penúltimo capítulo: Domingo, 13 de janeiro


segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Capítulo 40 - A Queda da Bastilha

Jacques riu. Era um Jacques trinta e poucos anos mais novo e nem sequer havia deixado Chaumont.
- Muito bem... vou levar uns cinco livros sobre pescaria, então.
A vendedora de livros se irradiou, divida entre felicidade e embaraço.
- O que acha da gente sair para jantar qualquer dia desses? – sugeriu o homem. - Você sabe, para conversarmos sobre livros.
Christine ergueu as sobrancelhas.
- Faz cinco minutos que te conheço e já esta me convidando para sair?
Jacques ficou calado por um tempo e, subitamente, saiu da livraria, deixando a vendedora estupefata e sem reação.
Cinco minutos depois, ele adentrou o local novamente e se postou em frente a Christine, dizendo:
- Pronto, já faz dez minutos que nos conhecemos. É o suficiente?
Ela riu. Jacques não esperou uma reposta.
- Na sexta-feira, às sete horas?
A vendedora concordou e, três dias depois, estavam jantando em um belo e rústico restaurante. Não havia iluminação elétrica, somente candelabros e lustres de vela pendendo do teto.
- Gosta daqui? - indagou Christine, que havia trocado o uniforme azul da livraria por um belo vestido laranja com detalhes floridos.
Jacques, que estava sentado em frente, galanteou:
- Gosto da sua companhia.
Ela corou e tentou desviar do assunto:
- O que faz? No que trabalha?
- Bem, eu sou físico. Minha profissão é estudar as leis do universo.
- Como um matemático ou é mais parecido com um astrônomo? - perguntou.
- Nenhum dos dois. Um matemático faz acrobacias com números e um astrônomo tenta enxergar um limite para o universo. Já o físico usa os números para quebrar as fronteiras e limites do espaço. Entendeu?
- Para falar a verdade, não muito - disse, confusa.
- Se quiser, posso te explicar melhor. Mas somente na próxima vez em que nos encontrarmos.
- Ora, mal começou o primeiro encontro e já esta pensando em um segundo?!
O físico sorriu:
- Tenho certeza que haverá mais um e que muitos outros se seguirão a esse.
- E o que te faz ter essa certeza?
- Posso até te dizer, - respondeu Jacques - mas só no segundo encontro!

* * *


Anos mais tarde, em uma pequena e curiosa cidade, Adam foi enterrado. Davis e Gary depositavam seu corpo no buraco que haviam cavado, enquanto Jacques e Samantha analisavam com curiosidade a estátua. Cinco é o numero de peças que restavam. Das pretas, somente um rei; das brancas, o rei, a rainha e dois bispos.
O físico observou que o bispo Di Ravenna era representado por um peão e não um bispo como era de se esperar. Depois complementou dizendo que rainha não era necessariamente uma mulher e nem o rei era obrigatoriamente um homem.
Samantha se sentiu um tanto incomodada com o comentário. Qualquer insinuação a respeito de Kaninchen ser uma mulher a irritava. Afinal, ela era a única que restara entre os quatro.
No entanto, ninguém mais tinha plena confiança na arqueóloga. Agora era cada um por si e confiar em alguém poderia ser um erro irreparável. Eles se olhavam com olhares de desconfiança e não conseguiam mais manter um clima de amizade.
- Não há outra explicação. A peça de Adam foi comida, sim! - afirmou categoricamente o francês.
- Mas como?! Ele se suicidou, não foi morto pelo Kaninchen! - lembrou Samantha, como se a visão do punhal enterrado no peito de Adam tivesse desaparecido da memória deles.
- Veja aqui - Jacques falou, indicando o rei claro e, em seguida, algumas casas do tabuleiro. - E aqui. Se ele era um bispo, podia se mover nessa diagonal e, assim, o rei poderia comê-lo quando estivesse bem aqui.
- Eu sei, eu sei. Acontece que ele não foi assassinado! Não deveria ter sido retirado do jogo pelo rei.
Gary, ainda com as mãos sujas de terra, se aproximou dos dois.
- Acho que vocês estão sendo objetivos demais. É só uma sugestão, mas acho que deveriam levar mais para o lado simbólico e emocional...
Jacques se chocou ao ver o outro falando sobre emoção:
- O que quer dizer?
- Quero dizer que, teoricamente, ele se suicidou. Mas há uma razão para ele ter feito isso?
- Para que Kaninchen não o pegasse - respondeu Davis, se reunindo com os demais.
- Exatamente. Estava fugindo de Kaninchen.
- Ainda não entendi - afirmou o físico.
- Ora, é simples - desdenhou Gary. - Se o cara se matou para fugir do outro, é como se Kaninchen o tivesse induzido a cometer suicídio.
- É como... se Kan o tivesse matado? - perguntou Samantha.
- Eu diria - riu Gary sozinho - que o Kaninchen “suicidou” o tal Adam.
A volta para a casa bege foi mais difícil do que eles imaginavam. Nenhum deles queria andar na frente, com medo de que fosse atacado pelas costas. Além disso, as conversas eram bastante limitadas, já que os suspeitos de cada um agora eram três. Uma incômoda e crescente falta de confiança passou a rondá-los.
Quando o sol se pôs e as estrelas surgiram, todos os quatro ficaram acordados por um bom tempo. Três deles temiam ser a vítima daquela noite e, por isso, deixavam seus olhos atentos ao redor, até não aguentarem mais de sono.
Passava de meia-noite quando Jacques se levantou de seu leito improvisado e caminhou pesaroso até a cama de um outro alguém.
Ainda com a luz apagada, o físico sacudiu levemente a pessoa e chamou-a pelo nome.
- Que foi, Jacques - perguntou Kaninchen, se levantando.
- Eu preciso que me leve à sua casa. Preciso que me leve até Wert.
Kan ficou durante um tempo boquiaberto, sem saber o que responder. Até poderia negar sua identidade, porém algo lhe dizia que iria ser em vão. Percebendo que não adiantaria mais fingir, pegou uma arma de debaixo do colchão e seguiu com o físico até a porta. Sentia que não havia outra escolha: se Jacques contasse para mais alguém sua identidade, teria que matar todos os três ao mesmo tempo e isso poderia ser muito arriscado, principalmente agora no fim do jogo. E eles saíram da casa tão silenciosamente que nenhum dos outros dois percebeu.
Quando receberam o vento gélido da noite em seus rostos, Jacques e Kaninchen começaram a caminhar em direção à casa de Wert.
- Como soube? - questionou Kaninchen no meio do caminho.
- Eu te observei durante muito tempo. Tinhas minhas suspeitas de que fosse você. Então, pouco antes da confeitaria explodir, quando Adam nos gritou, eu vi quando se desviou em direção ao banheiro para prender Nicole antes de sair de lá. Não sabia por que havia feito isso, mas agora eu sei. Sei também por que você pegou uma corda da dispensa da confeitaria na madrugada em que Nicholas foi morto...
- Basta! - ordenou Kaninchen. Estava nervoso por ter fracassado em planejar esses detalhes. - E por que não contou aos outros sobre isso?
- Medo. Medo de que estivesse errado e acabasse piorando as coisas...
- E para quê quer ver Wert?
- Na verdade, preciso falar com vocês dois. Como Wert é quem mais conhece o jogo, precisa estar presente.
- Então, Jacques, seu plano é conversar pacificamente com dois assassinos? Não tem medo de morrer?
- Veja, eu acredito que todos nós temos uma trajetória para seguir na vida. Eu já tive minha infância, já estudei, fiz duas universidades, iniciei minha carreira como físico, fiz descobertas que me consagraram, casei, optei por não ter filhos e, hoje, com 63 anos, creio que já cumpri minha missão.
“Quando minha hora chegar, seja quando for, estarei pronto.”
- É, são muito poéticas suas palavras, porém tenho certeza de que elas mudarão sob a mira de uma arma.
Não disseram mais nada até chegarem ao seu destino.
Kaninchen nem seu deu ao trabalho de bater na porta da casa: girou o trinco e adentrou berrando “Wert, venha cá!”.
Assim que Wert apareceu no pé da escada, se espantou ao ver que tinha duas visitas.
- Kani.... - disse com a voz sonolenta - O que está havendo?
- Ele descobriu quem eu era - respondeu. - Disse que quer conversar conosco. Foi melhor trazê-lo aqui.
Jacques, que estava sentado na mesma cadeira em que tantos haviam sangrado até morrer, falou sem demonstrar medo.
- Wert, eu tenho uma proposta para vocês.
Os outros dois se entreolharam.
“Podem fazer o que quiserem comigo, desde que deixem os outros saírem da cidade.”
Kaninchen e Wert riram.
- Não é assim que funciona, francês. O tabuleiro não deixa ninguém ir embora da cidade até que esteja terminado.
- Esteja terminado? - Jacques repetiu.
- Sim, até que o jogo tenha acabado, quando no tabuleiro restar uma peça só.
- Será impossível. Os dois reis representam uma única pessoa. O jogo nunca terminará?
Kaninchen olhou fixamente para ele. Essa questão também já o preocupara uma vez.
- O tabuleiro sabe o que faz - retrucou.
- Pode até ser, porém lembre-se do que o irmão de Wert dizia: o tabuleiro não perdoa!
- Ora, cale-se! - ordenou Kaninchen. - Cometeu um grande erro em vir ate aqui, morrerá antes do que deveria.
- Quanto? Um dia antes? Dois dias? Que diferença fará para um velho de tantos e tantos anos como eu? Meu verdadeiro erro foi ter comprado uma passagem para Lisboa cerca de quinze dias atrás.
- Para mim chega... Kani, tem uma arma contigo? - Wert virou-se para Kaninchen.
- Claro.
- O que está esperando, então? Dê logo um tiro neste impertinente!
Contudo, quando Kaninchen levantou o braço que segurava a pistola, Jacques interveio:
- Como vou morrer em breve, creio que não há problema em vocês me esclarecerem dúvidas que muito me atormentam.
Wert, mesmo estando ansiosa para que Jacques morresse logo, antes que algo desse errado, não fez imposição. Não entendia de que iria adiantar a ele ter suas perguntas respondidas, porém permitiu que o físico prosseguisse.
“Bem, a primeira dúvida me surgiu quando Melina foi morta. Na casa em que foi queimada, havia uma parte da parede descascada. Por quê?”
Kaninchen relutou um pouco, porém disse por fim:
- Fui eu quem descasquei. Quando cheguei a casa em que a argentina havia ateado fogo vi que havia algo escrito na parede. Era pouco visível, mas, mesmo assim, achei conveniente arrancar uma parte da parede onde, aparentemente, havia meu nome escrito. Como sabia que não tinha muito tempo, pois se me demorasse mais notariam minha falta, fiz tudo às pressas.
- É, foi o que pensei - suspirou Jacques. - Me recordo também de uma vez em que Susan descobriu que a peças de xadrez correspondiam ao nosso grupo e concluímos que as três peças brancas desaparecidas eram Iam, o bispo e Lisa, e a peça preta que não estava mais lá era Willard. Como isso podia ser possível se Willard não fazia parte do grupo das peças negras?
- Ora francês, basta pensar um pouco. A primeira peça preta comida não era Willard, era um tal de Marcel, que pertencia ao outro grupo!
- Bem, agora, uma última questão e a que mais em intriga: por que o codinome de “coelho”?
- Ah, francês - sorriu Wert, sarcástica - Isso, infelizmente, você vai morrer sem jamais saber a resposta!
Jacques se levantou da cadeira, assustado.
- Não, por favor! Não me mate sem antes me prometer que não machucará os outros! Kan, considere minha proposta. Pode me torturar se quiser, mas não os mate, por favor!
Kaninchen mirou os olhos claros e suplicantes do físico francês enquanto encaixava o dedo no gatilho. Agora que estava tão perto de seu objetivo, não iria fraquejar.
E, com somente um tiro certeiro na cabeça, Jacques Chevalier perdeu a vida.


(Continua...)

Próximo capítulo: Quarta-feira, 09 de janeiro

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

AVISO !

Não haverá atualização do blog nesta quarta-feira (dia 02/01) devido à ocorrência de sério contratempo. Minhas sinceras desculpas.
Próximo capítulo será no DOMINGO (dia 06/01).