domingo, 12 de agosto de 2007

Capítulo 12 - Como Formigas


Ninguém acreditava ter ouvido aquelas palavras saírem da boca de Jacques Chevalier. Como um tão renomado físico poderia acreditar que não haveria um meio de sair de uma simples cidade?

- Jamais? O que você quis dizer com isso, Jacques?

O homem velho e que ainda mantinha seu sotaque francês fixou seus olhos no chão por alguns segundos antes de responder à Melina.

- Exatamente o que eu disse. Nós nunca iremos sair daqui por vontade própria.

- Por quê? - indagou Davis.

- Porque nós não viemos até aqui por livre e espontânea vontade, e não sairemos da cidade se o quisermos fazê-lo.

A frase fazia sentido. Os físicos às vezes tinham essa capacidade: fazer com que a teoria mais absurda passasse a ser aceitável se dita por eles. O francês continuou, sem se abalar:

- Portanto, nós nunca iremos retornar aos nossos lares, porque sempre será isso que desejaremos.

Mais uma vez ninguém tinha argumentos para confrontar Jacques. Davis arriscou prolongar o assunto:

- Mas e se não quisermos, por um instante, sair daqui?

- Caso isso hipoteticamente aconteça, pode ser que tudo se resolva, Davis, mas isso nunca ocorrerá. É completamente impossível.

Edwin, que estivera ocupado tentando traduzir o cardápio, disse soturnamente sem levantar os olhos do papel em suas mãos:

- Improvável sim, mas não impossível.

O francês não retrucou. Mesmo porque não adiantaria: ninguém estava ouvindo, todos haviam submergido em pensamentos, em um estado onde os cinco sentidos dão lugar à reflexão.

E assim permaneceram durante vários minutos. Já eram umas duas horas da tarde e ninguém havia decidido o que fariam a seguir. Quanto tempo ainda continuariam a viver naquele pesadelo?

Quantas mortes mais haveria até que eles conseguissem sair dali? Será que Jacques estava mesmo certo e eles nunca conseguiriam deixar a cidade?

Essas eram perguntas para as quais ninguém tinha resposta. Não ainda.

* * *

A noite caia lá fora e as mesas e cadeiras do restaurante Ravintola estavam sendo reorganizadas para servirem de cama para dezesseis pessoas. Ninguém havia saído de lá desde que haviam entrado. Provavelmente aquele era o lugar mais seguro para eles se abrigarem.

Enquanto a maioria dos homens organizava um ambiente para todos dormirem, as mulheres conversavam em um canto. Se fossem ficar juntas por algum tempo, era essencial que se conhecessem melhor. Mesmo a chinesa Lin, que tinha dificuldade em se comunicar com os demais, prestava atenção na conversa porque, de vez em quando, algum som fazia sentido para ela.

Gary estava pensativo enquanto ajudava a contragosto a juntar cadeiras. Não estava contente em saber que dormiria em quatro assentos. Além disso, ninguém entendia, mas, de todos, ele era o mais alarmado com a morte de Ian. Fora ele quem achou o corpo, e não demoraria para ele ser incriminado. Nicholas havia ficado muito abalado ao ver o triste destino do homem, mas foi Gary quem o viu pela primeira vez.

Decidindo que precisava ficar um pouco sozinho, largou o serviço e foi para a cozinha. Lá, acomodou-se em um assento e se dedicou a olhar para o nada. Foi quando um pequeno movimento lhe chamou a atenção.

Formigas, uma porção delas, caminhavam em fila indiana pelo chão.

Gary se agachou no chão e pôs-se a observá-las. Todas seguiam em uma mesma direção; o objetivo era um só.

O homem, com o dedo, desviou o caminho das formigas confundindo o olfato delas com cheiro humano. Nenhuma delas sabia mais para onde ir. Agora as formigas eram como as pessoas naquele estabelecimento. Todas perdidas, sem rumo.

Gary imaginou se algum dia os insetos achariam o caminho de volta. E ele, será que algum dia voltaria a lecionar oceanografia na faculdade em que era professor?

Enquanto pensava nisso, Jaqueline entrou na cozinha. Não estava realmente preocupada com Gary, entretanto não estava suportando a conversa das outras mulheres e nunca pensaria em ajudar os homens com a arrumação.

- Tudo bem? - ela disse, enquanto se agachava ao lado de Gary.

O homem olhou para Jaqueline, desconfiado. Pelo pouco que conhecia da moça, nunca esperaria que ela quisesse saber se alguém estava bem.

- Não, não estou. Olha, não precisa fingir, O.K.? Eu sei que você não gosta de mim, aliás, você não gosta de ninguém além de você mesma e eu também não. Então, nem tente puxar conversa como se fosse sua obrigação.

A moça ouviu a ofensa de Gary como se cada palavra a atingisse duramente no peito. Essa era a última coisa que precisava naquele momento. Jacqueline, sentindo-se contrariada, levantou-se sem dizer nada e se afastou.

Gary já estava acostumado em ser solitário e não sabia se conseguiria mudar seu jeito de ser. Não queria machucar as pessoas, mas sabia que ninguém tinha simpatia por ele, só se aproximavam por pena daquele professor tão solitário.

E era isso que ele odiava.

Olhou para o chão de novo e viu que as formigas já haviam retomado seu caminho. O homem ergueu-se e, por raiva de si mesmo, esmagou todas as formigas com o pé antes de sair da cozinha.

* * *

O bispo Di Ravenna estava isolado em um canto. Ele havia sido impedido de ajudar na arrumação por ainda estar fraco e cansado. Não haviam dito para ele, mas, além disso, os outros acreditavam que ele havia ficado abalado em ver a cabeça e Ian separada de seu corpo. E era verdade.

Mas agora sua cabeça devaneava em outra direção. Talvez, pensava ele, se não tivesse saído da Itália, estaria aconselhando padres em alguma igreja e não sentado em uma cadeira, em um restaurante finlandês numa cidade desconhecida.

O bispo não temia a morte, confiava que Deus havia reservado um lugar especial para ele, bem ao Seu lado. Ele sempre fora fiel à sua religião e estava certo de que seria recompensado por isso. O problema era que, se ele morresse, seu maior segredo se perderia para sempre e isso não poderia acontecer.

Também era impensável revelá-lo a alguém, precisava ser uma pessoa que estivesse preparada para entendê-lo. Após pensar durante alguns minutos sobre o que iria fazer, o bispo Di Ravenna levantou-se e olhou para os lados. Todas as outras pessoas estavam distraídas demais para reparar no que ele faria. Daqui a alguns minutos, somente a Lua e as estrelas acompanhariam seus passos.

O bispo, então, abriu a porta do restaurante silenciosamente e saiu na calada da noite.

Quinze minutos depois, começou a chover.

(Continua...)


Próximo capítulo: Domingo, 19 de agosto