segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Capítulo 42 - Xeque-Mate, parte I

"(...)Subitamente um Coelho Branco com olhos cor-de-rosa passou correndo perto dela.

Não havia nada de muito especial nisso, também Alice não achou muito fora do normal ouvir o Coelho dizer para si mesmo ‘Oh puxa! Oh puxa! Eu devo estar muito atrasado!’ (quando ela pensou nisso depois, ocorreu-lhe que deveria ter achado estranho, mas na hora tudo parecia muito natural); mas, quando o Coelho tirou um relógio do bolso do colete, e olhou para ele, apressando-se a seguir, Alice pôs-se em pé e lhe passou a idéia pela mente como um relâmpago, que ela nunca vira antes um coelho com um bolso no colete e menos ainda com um relógio para tirar dele. Ardendo de curiosidade, ela correu pelo campo atrás dele, a tempo de vê-lo saltar para dentro de uma grande toca de coelho embaixo da cerca.

No mesmo instante, Alice entrou atrás dele, sem pensar como faria para sair dali.

A toca do coelho dava diretamente em um túnel, e então aprofundava-se repentinamente. Tão repentinamente que Alice não teve um momento sequer para pensar antes de já se encontrar caindo no que parecia ser bastante fundo.”

(Capítulo 1, Alice no País das Maravilhas - Lewis Carroll)

* * *

Kaninchen abriu os olhos.

Vislumbrou com satisfação que a alguns metros de si um homem jazia morto. Enfim, o ciclo havia se encerrado novamente.

Após muitas frustrações, desesperos silenciosos e insônias, a missão havia sido concluída com bastante êxito. E, apesar de alguns detalhes às vezes não saírem como planejado, sempre havia sido possível contorná-los e, no final, ele ganhara o jogo.

As únicas peças que deveriam restar eram os dois reis. Por via das dúvidas, resolveu averiguar se só haviam duas peças esculpidas.

Levantou-se e riu da encenação de que havia sido atingido por uma bala. Sua risada ecoou pela cidade deserta.

Reconheceu que mentir para o outro até o fim de sua vida fora demasiado dispensável e insano. Mesmo assim, estava feliz consigo mesmo.

Descobrira que era capaz de coisas que nunca imaginara, tinha um potencial invejável. Como estava perto da praça, não precisou andar muito. Mesmo assim, ele ia devagar. Queria desfrutar da sua situação de sobrevivente; sobrevivera a si próprio, sobrevivera ao jogo.

Enquanto caminhava, distraiu-se com suas reminiscências. Deixou-se levar pois sabia que tinha todo o tempo do mundo e nunca estivera calmo o suficiente para se deixar mergulhar nas lembranças do dia em que chegara àquela cidade. Sua mente retrocedeu quase três semanas atrás...

* * *

Davis estava a dois quarteirões de sua casa. Distraído, nem se dava conta de caminhar; somente colocava um pé na frente do outro e seguia até a sua moradia. Pouco antes de chegar, inspirou algo mais rarefeito que o ar, mas nem se deu conta. Seu pensamentos não o deixavam. Willard espreitava-o escondido e observava enquanto Davis respirava o gás alucinógeno que saia de um pequeno dispositivo encostado ao meio-fio.

Cerca de um ou dois minutos depois, estando a algumas casas antes da sua, viu sua própria habitação explodir. Soltou os papéis que segurava, deixando-os ao relento, e, de repente, tudo ficou branco.

E ele não se lembra de mais nada.

Após a explosão uma estranha luminosidade atingiu-o nos olhos e ele mal conseguia ver o que estava a sua frente. Quando recuperou sua visão, não conseguiu reconhecer nada que estava a seu redor. Ele olhava desesperadamente para todos os lados para ver se reconhecia alguma casa ou algum lugar familiar, mas foi em vão.

Foi quando Davis avistou um velho senhor francês que, mais tarde, mataria com um tiro. A primeira coisa que este lhe disse foi:

- É inútil, você não está onde pensa estar...

Naquela noite, ele se aglomerava na praça com mais dezesseis pessoas tentando descansar. Estava quase dormindo quando alguém o sacudiu e uma voz conhecida sussurrou:

- Não tenha medo. Venha!

Ele foi. E a decisão de ir mudou sua vida para sempre.

Como estava escuro, não podia distinguir o vulto que o conduzia ao seu lado. Suspeitando que fosse alguém de seu grupo, mas sem se importar verdadeiramente quem era, ele não cessava as perguntas:

- Quem é você? Aonde está me levando? O que está acontecendo?

Mas continuava seguindo-a.

Assim que chegou a uma casa fracamente iluminada, e eles adentraram-na, pôde ver quem era sua guia.

Davis demorou aceitar que estava próximo a ela novamente. Imaginara que nunca mais a veria.

- Mellanie... - disse ele baixinho.

- Wert. Me chame assim - ela respondeu.

- O que está fazendo aqui? O que eu estou fazendo aqui?

- Calma, Davis. Aos poucos, vou respondendo suas tantas indagações. Não é isso que importa agora.

- E o que import...

E antes que ele pudesse concluir a pergunta Wert o interrompeu:

- Você foi trazido para essa cidade com uma missão e tem que cumpri-la. Estamos próximos à fronteira da França com a Itália, em uma cidade abandonada há décadas. Há uma história a respeito de uma lenda - que lhe contarei depois - e que diz que, de tempos e tempos, a estátua que você viu na praça exige que sangue humano seja derramado aqui.

Davis estava assustado, mas escutava atento cada palavra.

“E enquanto isso acontece, o tabuleiro joga com as peças. Eu acredito que você faça parte desse jogo como o rei.”

- Qual dos dois? - indagou, surpreso.

- Os dois. Portanto, sua tarefa como rei, é eliminar todas as outras peças.

- Como?

- Assassinando quem elas representam.

- Quem são?

- Os dezesseis de seu grupo e outros dezesseis de um outro grupo que está escondido aqui na cidade.

Davis ficou calado. Há um dia atrás estava somente retornando a sua casa e agora estava incumbido de matar mais de trinta pessoas.

- E sobre o homem que vimos morrer hoje? - ele perguntou.

- Isso é irrelevante. Depois te contarei tudo.

- Tenho que matar todos agora?

- Não, não! Matará a todos, mas aos poucos. Vou te instruir melhor amanhã, porém daqui algumas horas já deverá assassinar alguém.

O homem sorriu.

- Bem, infelizmente para você, não irei matar ninguém. Realmente acha que participarei desse joguinho? Só por que já estivemos juntos? Eu não sinto mais amor por você, Mellanie, sinto repugnância, ódio.

E quando ele se levantou fazendo menção de ir embora, ela lhe apontou um revólver.

- Acho que você não entendeu muito bem, Davis. Não é uma escolha.

- Quer dizer que se eu não aceitar, vai me matar? - desafiou ele.

- Eu não. Por mais que também sinta raiva, não sei se seria capaz de atirar em você. Talvez seja, mas não o farei se não for necessário.

“Todavia, o tabuleiro não poupa esforços para punir os que o desobedecem.”

- Do que você está falando? Você está louca!

- Me escute, que será melhor pra você. Te explicarei tudo com o tempo; o que tem que saber é que, se o tabuleiro lhe escolheu para ser o rei, você não pode sair da cidade e tampouco escapar de seu destino. Minha irmã, Megan, também não acreditava e acabou morta pelo jogo.

- Esquece... - disse, e deu mais um passo em direção a porta.

Ela colocou o dedo no gatilho.

- Espere! Você já foi escolhido, não há volta. Se para te convencer, necessito algo mais do que lhe dizer que sua vida está em perigo, lhe prometo uma recompensa.

- Qual? Dinheiro? Não, obrigado.

- Não, não é dinheiro. É algo muito melhor.

- Mellanie, eu...

- Wert! Já te disse para me chamar de Wert!

- Já te escutei, Mellanie. Só que eu não sou assassino. Não sou maníaco como você!

- Mentira! Nós dois sabemos que a morte daquele casal não foi acidente.

- Do que está...?

Wert retrucou:

- Você sabe muito bem. Há alguns anos. É capaz de qualquer coisa para salvar sua vida, não?

Davis fitou-a. Mellanie retribuiu o olhar desafiador.

Ela havia lhe prometido uma recompensa e ele não se esqueceria. Quando chegasse a hora, ele iria lhe cobrar...

* * *

Davis voltou sua atenção ao tempo presente. Estava já em frente a estatua que continuava a mesma; exceto pelas peças. Como previsto, só haviam dois reis. Cada um em sua posição inicial, parecendo se encarar.

O advogado não sabia mais o que fazer: deveria matar a si mesmo para que uma das peças comesse a outra? Se a resposta fosse afirmativa, Davis decidiu que preferia que os dois continuassem ali, fincados, jogando.

Ficou olhando para a estátua.

Duas pessoas jogando, uma delas sem busto. Nunca ninguém de seu grupo soube que a outra pessoa era uma mulher. Era Wert, e ela mesma dissera a Davis.

Toda vez que o jogo pedia mortos, haviam dois jogadores para comandar o jogo. Para que comandassem mesmo os reis. E, dessa vez, um dos jogadores era Wert.

O adversário, Davis não sabia se era ele, Willard ou um outro alguém. No entanto, gostava de crer que era ele. Ele mandando nele mesmo. Dono de suas próprias decisões, culpado por seus próprios homicídios.

Por algum motivo, Davis olhou para a esquerda e viu vários montes de terra. Os túmulos. Ali jaziam doze corpos, todos assassinados brutalmente. Agora, enquanto seus órgãos eram decompostos debaixo da terra, Davis observava-os impune. Encostou-se em uma árvore e começou a relembrar a morte de todos. Um a um, os últimos momentos da vida dos mortos iam passando em sua mente e lhe causando uma espécie de felicidade.

Começou por Ian e seguiu, até chegar ao bispo. Então, parou. Prendeu a respiração involuntariamente, fechou os olhos e a última vez em que vira o bispo vivo lhe veio à mente.

Lembrava-se de que estava no Ravintola, organizando as camas improvisadas, quando notou que o bispo saira do restaurante há alguns minutos. Logo que pôde, foi discretamente atrás dele. Assim que Davis o avistou, chamou-lhe numa altura que só os dois poderiam ouvir e, sob a claridade da lua, o viu fazer um gesto. Um gesto que congelou em sua mente e que agora o preocupava: colocara algo dentro de sua batina.

Davis levantou-se subitamente, dispersando a névoa de lembranças que o cercava, e correu até o túmulo do bispo. Começou a cavar.

Durante meia hora ele cavou, até que metade do cadáver estivesse visível. Davis desejou que, independente do que fosse que o religioso havia escondido, ainda estivesse lá.

Ele, então, apalpou, desconfortavelmente, o lado de dentro das vestes e sua mão tocou em um papel. Retirou-se de perto do corpo e se sentou para ler.

O papel estava corroído em algumas partes, porém era visível em sua maioria. Davis não estranhou que ainda existisse o papel: nada mais o espantava naquela cidade.

Começou a ler. Não demorou a perceber que era uma carta.

Lia as palavras com desinteresse, porém se surpreendia. Era a respeito de uma garota de quatorze anos, filha do bispo Di Ravenna. Marcela; era como a menina se chamava.

Na carta, ele dizia que enviava bastante dinheiro que havia recebido recentemente e perguntava como estava o delicado estado de saúde da menina que tinha seu sangue. E, no final, dizia cautelosamente que iria até Lisboa visitá-la. Não conseguiu embarcar no vôo que o levaria a Portugal e, nem ao menos, despachou a carta.

Talvez não tivesse tido coragem, ou talvez se arrependeu de enviar tanto dinheiro.

Enfim, o maior segredo do religioso era aquele: uma carta de um fiel à igreja a uma mulher falando sobre a filha dos dois. Não teve tempo de escondê-la onde planejava e seu segredo agora fora revelado à uma pessoa que não estava preparada para entendê-lo.

Assim que terminou de ler a carta, Davis amassou o papel e olhou para o rosto cadavérico do bispo. De relance, observou um pequeno verme azulado aparecer pelo lado direito da face do cadáver e sumir por uma das cavidades das narinas. Deixara a infeliz menina órfã de pai. Uma pontada de remorso transpassou seu corpo, mas desapareceu tão subitamente quanto surgiu.

Uma parte de si lamentava tantos mortos inocentes, mas, por outro lado, conseguira salvar sua vida.

Ele sorriu. Não sabia exatamente o porquê. Estava confuso: feliz por ter finalizado, porém com um íntimo desejo de que não houvesse começado jamais.

Contudo, ele não se lamentava. Sabia que nada poderia mudar o que já havia sido feito e nenhum daqueles defuntos à sua frente retornariam à vida.

Agora, cansado de tantos conflitos mentais, se pôs de pé e foi cumprir seu último dever. Cinco minutos depois, chegou a casa de Wert e bateu à porta. Imediatamente ela correu para abri-la.

- O que aconteceu? - foi a primeira coisa que ela indagou. - Você nunca bate à porta.

- Não importa. Está tudo acabado, Mellanie - disse, enquanto adentrava e ouvia a porta sendo fechada atrás de si.

- Já te disse para não me chamar assim...

- Você não escutou o que eu disse? Acabou! Não há mais ninguém além de eu e você nesta maldita cidade!

- E Gary?

Ele se sentou.

- Morto, estirado no meio da rua.

Mellanie sorriu.

- Então é verdade? – Ela deu um longo suspiro e também se sentou. – Ah, então todos os deveres foram cumpridos.

Davis levantou-se repentinamente e apontou sua arma para a moça.

- Na verdade, nem todos.


(Continua...)

As últimas postagens: a Segunda Parte do Capítulo 42 e o Epílogo serão publicadas juntas e excepcionalmente no sábado, dia 19.