domingo, 4 de novembro de 2007

Capítulo 24 - Monarquia

O Sol raiava fortemente no céu e agora quase atingia seu ápice. Iluminados por ele, doze pessoas acabavam de velar um homem. Onze deles estavam assustados com o modo com que o piloto havia morrido, exceto Kaninchen, que apesar de manter uma aparência de consolação, por dentro ria e seu riso ecoava pela cavidade de seu corpo onde deveria existir um coração, mas parecia nada haver.

O rapaz que fora enterrado chamava-se Luis Filipe e seus órgãos estavam na sua maioria corroídas por ele ter ingerido ácido sulfúrico na noite anterior.

Assim que acabaram o modesto velório, todos se dirigiram à estátua para ver quantas peças ainda restavam. Surpreendentemente, havia um grande desfalque de peças pretas no tabuleiro. Como eles constataram após contarem o número de peças, só restava um peão preto - sete haviam desaparecido. Outra coisa que ninguém esperava era o sumiço de uma das torres negras. Na parte branca, as mortes seguiam o mesmo padrão: mais um peão não estava lá, como referência ao falecimento de Luis Filipe.

Esse fato deixou alguns curiosos com relação as peças pretas. Será que estas representavam habitantes daquela mesma cidade? Será que eles estão do nosso lado ou contra nós?, questionavam-se.

- Sabe, estive pensando, - começou Anthony. - será que não seria útil para nós analisarmos todas as jogadas?

- Mas como, Anthony, são muitas! - retrucou Samantha.

- Eu sei, - ele respondeu - mas a gente poderia ao menos tentar entender esses lances. E se nós estivermos deixando passar algo importante?

- Anthony tem razão. - concordou Edwin. - Quem aqui entende de xadrez?

Susan, Davis, Samantha e Jacques levantaram a mão. E enquanto os três, juntamente com Edwin e Anthony, observavam e tentavam reconstituir algumas jogadas mentalmente, os outros observavam.

Após terem ficado lá durante aproximadamente uma hora, Jacques ficou boquiaberto de assombro. Quando perguntaram-no o que era, ele apontou para a o rei das peças escuras.

- É ele, é ele! - Jacques dizia.

Somente alguns minutos depois, com a devida explicação do físico francês, foi que todos entenderam: ao pensarem que o rei branco e a rainha preta eliminavam todas as peças, eles haviam cometido um equívoco. Nas palavras de Jacques, “nosso erro provavelmente ocorreu devido ao fato de que o rei preto parecia nunca sair do lugar”. O problema, explicou o físico, é que ele saia sim, só que depois - após algumas jogadas - ele retornava.

- Por que? - perguntou Susan.

- Não sei, - confessou Jacques. - mas tenho uma teoria. Já que o rei das peças pretas é o único que nunca aparenta sair do lugar, creio que ele determina o momento em que o jogo pára.

Como ninguém entendeu, Jacques explicou novamente:

- É assim: todo mundo aqui sabe que nós não vemos todas as jogadas. Vemos apenas algumas. Por exemplo, entre a última vez que nós olhamos e hoje ocorreram muitos e muitos lances, mas nós só vimos dois - o de ontem e o de hoje.

- É como se alguém tirasse uma fotografia da partida de tempos em tempos? - arriscou Joanne.

- Exatamente, minha querida! Só que, como saber quando “tirar a fotografia”? O meu palpite é que ela só é “tirada” quando o rei volta à sua casa inicial no tabuleiro.

- E o que isso importa pra nós? - indagou Nicholas.

- Importa mais do que você pensa, Nicholas. - interferiu Edwin. - Na verdade, se a teoria de Jacques estiver certa, talvez nós tenhamos cometido um grande engano.

- Em que sentido?

- No sentido em que talvez as duas peças que “comem” todas as outras não sejam a rainha branca e o rei preto. Talvez, - completou. - as duas peças com a função de homicidas sejam os dois reis.

Desta vez foi Davis que ficou sem entender.

- Não compreendo que diferença isso faz.

Samantha, seguindo a linha teórica de Jacques, respondeu:

- Na verdade, se eu entendi direito, esse detalhe é uma prova conclusiva.

- De quê?

- De que há somente um assassino na cidade eliminando a todos e, nesse exato momento, está entre nós.

* * *

Algumas horas depois, durante um silencioso crepúsculo, um homem e uma mulher conversavam em um cômodo mal-iluminado. Uma dessas pessoas era Kaninchen, a outra gostava de ser chamada de Wert.

- E então, - perguntou Wert, sem demonstrar muito interesse - foi difícil se desvencilhar daquele grupinho?

- Imagina! Na confeitaria todos ficam espalhados, cada um no seu canto e ninguém sabe onde cada um está.

Wert então fez um pequeno gesto de entendimento com a cabeça e voltou a resolver a palavra-cruzada de um jornal. Após uma pequena pausa, Kaninchen questionou:

- Você nos viu na praça hoje?

- Vi. - respondeu Wert, sem levantar a cabeça.

- E então?

- E então o quê?

Começando a se irritar com a indiferença de Wert, Kaninchen falou com um tom de voz mais alto.

- Ora, se você nos viu, deve saber do que estou falando! Não sei se você notou, mas eles já mataram uma parte da charada!

Olhando brevemente para a pessoa a sua frente, Wert respondeu:

- Ah, aquilo? É, realmente eles estão ficando mais espertos.

- Escuta, Wert, por acaso você não entende?! Eles podem estar próximos de descobrir coisas que não devem! E, se isso acontecer, não poderei deixá-los vivos. Será que agora compreende a gravidade da situação?

- Ei, Kani, relaxe! Aquelas pessoas, apesar de terem tido sorte em descobrir algumas coisas, não estão nem perto de achar a resposta para todas as dúvidas deles. A única pessoa que esteve mais próxima de desvendar o segredo foi o bispo. No entanto, ele está morto, não está?

- Está. - assentiu Kaninchen.

- Por falar nisso, você vai matar alguém daqui a pouco?

- Você sabe que sim.

- Vai ter que ser ele mesmo?

- É melhor.

- Para ele ou para nós? - questionou Wert.

- Os dois.

Após sua última fala, Kaninchen se levantou da cadeira em que estivera sentado, fazendo menção de ir embora. Antes, no entanto, Wert desviou novamente sua atenção da palavra-cruzada e disse:

- Sabe, quanto ao outro grupo, eu acho que está exagerando um pouco.

- Ora, faça-me o favor, Wert! Você sabe que não tive a intenção!

- Mas foram três vezes, Kani. Três vezes em que você assassinou mais de uma pessoa de cada vez! Ontem foram quatro!

Como Kaninchen não disse nada, somente desviou seu olhar para a porta, Wert acrescentou:

- Espero que isso não aconteça novamente.

A resposta veio um tanto quanto resignada:

- Vou tentar.

E quando já estava com a mão no trinco, Kaninchen ouviu Wert perguntar:

- Ei, o que é que “serve para aliviar a dor” e começa com a letra M?

Kaninchen, então, saiu pela porta rua afora, mas não sem antes responder soturnamente:

- A morte.

(Continua...)


Próximo capítulo: Domingo, 11 de novembro