domingo, 30 de dezembro de 2007

Capítulo 39 - As Revelações do Diário, parte II

19 de Agosto

Continuamos aqui na cidade. Hoje fomos à praça observar melhor a estátua, todas as peças ainda estão na posição inicial. Ainda é difícil definir se eu ou Wert temos uma peça correspondente no jogo. Da última vez em que presenciamos uma partida, éramos crianças.

20 de Agosto

Está complicado chegarmos a um acordo sobre quem vamos trazer à cidade e como iremos selecionar essas pessoas. Wert diz que basta termos uma lista com nomes aleatórios.

21 de Agosto

Já sabemos os nomes daqueles que traremos para a cidade. Hoje pela manhã fui ao aeroporto da cidade de Scacci e consegui uma lista com trinta e duas pessoas que embarcarão, ou melhor, embarcariam em um vôo amanhã.

Estamos fazendo os preparativos e, assim que o gás chegar, já poderemos agir.

Adam parou para indagá-los:

- Nos registros dos três dias seguintes ele só fala a respeito do gás e do método que usou para raptar nós do primeiro grupo. Tudo bem se eu pular essa parte?

Os outros assentiram com a cabeça.

25 de Agosto

Já estão todos na cidade. Trinta e duas pessoas e mais eu e Wert. Ao que parece eles estão bastante confusos. Aparentemente crêem que chegaram até aqui por magia e admiram a beleza da estátua na praça. Infelizmente, não podemos matá-los de uma só vez. O tabuleiro não permite. Ele quer que poucas mortes ocorram por dia, como se pudesse desfrutar calmamente de cada gota de sangue derramado.

Daqui algumas horas, pegarei os primeiros e vamos ver o que acontece.

26 de Agosto

Estou nervoso, apreensivo. Matei dois homens e uma mulher ontem à noite e a estátua nem se moveu.

Não era assim que devia funcionar. Wert acha que não teremos que arrumar substitutos para eles. Diz que nós dois temos peças correspondentes no jogo e, portanto, há que ter somente trinta vítimas.

Quando perguntei se no final não haveria de restar somente uma peça e não duas, Wert desconversou.

28 de Agosto

Mau encontro sossego para escrever em meio aos berros e lamentos de Wert. Assassinei mais dois na noite de ontem e o jogo de xadrez continua intacto.

Não poderei continuar agora, pois corro o risco de Wert querer pegar esse meu diário para jogá-lo na lareira.

29 de Agosto

Estou atônito. Escrevo somente para aliviar a tensão e ver se encontro alguma solução para o nosso problema.

Vários já estão mortos e o tabuleiro nem reage. Para piorar, o grupo começa a ficar na retaguarda: temeroso, desconfiado com tantas mortes.

30 de Agosto

Wert disse que, talvez, se pudéssemos nos recordar de quando nós dois vimos o tabuleiro jogar, poderíamos saber o que está errado.

Resolvi escrever a história pois sempre raciocínio melhor enquanto estou escrevendo. É como se, conforme minha caneta risca o papel, engrenagens na minha mente começassem a girar.

Tudo começou alguns anos depois do fim da Segunda Guerra.

Naquela época tudo era diferente. Milhares de pessoas moravam aqui e o comércio florescia. Não era uma cidade grande e nem conhecida, somente um pequeno ponto na divisa da França com a Itália. Muitas vezes pessoas de diversas nacionalidades passavam pela cidade e acabavam ficando ou voltando mais tarde.

Lembro-me muito bem de um senhor finlandês e sua mulher que resolveram ficar e até fundaram um restaurante aqui. Hoje o Ravintola está completamente abandonado. Esses dias fui lá e só restava uma massa verde na geladeira que nem faço idéia do que seja. Não sei nem mesmo se é comestível. Como não temos refrigerador, guardei mistos frios e vinhos no restaurante.

O resto da comida, armazenamos aqui em cima de nossa casa, onde tem dois quartos enormes e uma grande dispensa.

Enfim, naqueles anos do começo da Guerra Fria eu e meus irmãos ainda éramos crianças. Foi quando o tabuleiro fez o seu pedido.

Não sabemos com que freqüência isso ocorre, mas se passam anos e anos até ele querer sangue novamente.

O modo com que ele se impôs não foi nada sutil: do nada as pessoas começavam a morrer na nossa cidade, seja por problemas cardíacos, falta de ar, ou convulsões.

Foi então que nós ficamos conhecendo a lenda. Não me lembro muito bem dela, mas me parece que era sobre um dos deuses nórdicos que, de tempos em tempos, precisava que muito sangue fosse derramado ao seu pedido. E, como ele era um exímio jogador de xadrez, foi essa a forma com que lhe representaram: duas pessoas e um tabuleiro.

Achamos...

- Infelizmente, essa parte estava rasgada. Mas foi só um pequeno pedaço, o resto da história dele está intacto. - anunciou Adam.

...nome da pedra com que a estátua foi feita eu não me lembro bem, no entanto, o efeito sempre foi extraordinário. Ela reflete a luz do Sol de um jeito espantoso.

É certo que ninguém na cidade acreditava nessa lenda, mas quando a chacina começou, eles viram que era mesmo verdade. Foi então que um dos moradores que não fugiram, um dos amigos de meu pai, resolveu obedecer ao mito e começou a assassinar pessoas com as próprias mãos.

Aí as peças começaram a se mover.

Na primeira noite em que elas se mexeram, porém, meu pai ordenou que eu e meus irmãos saíssemos da cidade na carroça do senhor espanhol, dono da confeitaria.

E assim fizemos. Nunca mais vimos nosso pai novamente.

Vou ter que parar agora. Wert acaba de chegar e, pelo sorriso no rosto, parece que tem uma solução.

04 de Setembro

Não tive tempo para voltar a escrever esses dias. Estava bastante ocupado com os preparativos do nosso próximo seqüestro.

Wert crê que se o grupo que está na cidade representa as peças de uma cor só, temos que trazer outro grupo para representar o outro lado, os adversários.

Wert também falou em trazer uma pessoa para assassinar os integrantes dos dois grupos. Disse que não pode ser nenhum de nós e que não sabe como o tabuleiro escolhe quem será o homicida, mas ele escolhe.

Não me disse se é homem ou mulher, mas falou que já conhece esse alguém e que deverá estar infiltrado no grupo que trarei em breve.

Também falou que lhe inventou uma alcunha: Kaninchen.

05 de Setembro

Já chegaram mais dispositivos com gás alucinante e, agora, basta arranjar outra lista de passageiros de algum vôo. Serão dezessete pessoas dessa vez.

O grupo que trouxemos há algumas semanas se encontra escondido.

Eu...

- A continuação foi consumida pelo fogo - lamentou Adam. - O próximo registro data da madrugada da chegada de vocês.

08 de Setembro

Já estão todos aqui; inconscientes, claro. Como no outro grupo, as pessoas são todas muito diferentes. Tem velhos, jovens, uma argentina, um francês, um português, um sul-africano, duas irmãs...

Nesse momento, estou com um refém aqui dentro. Um velho bispo. Eu o trouxe com o grupo, mas ele recobrou a consciência antes dos outros. Não sei porque, talvez tenha inalado pouco gás.

Como nunca imaginei que isso aconteceria, deixei meus registros em cima da mesa e, como o religioso sabia ler latim, assim que ele ficou consciente e viu que não havia ninguém em casa, ele leu esse diário.

Wert está dormindo no andar de cima e eu fui obrigado a amarrar o bispo. Já o ameacei e disse-lhe que convivesse com o grupo que em breve acordaria e o alertei que se contasse alguma coisa do que sabia, morreria na hora.

Uma parte de mim pensou até mesmo em arrancar-lhe os olhos por ter visto todas as minhas anotações, porém eu não posso fazer isso. Ele é um bispo, um mensageiro de Deus, um pregador católico.

Meu pai sempre nos ensinou a respeitar incondicionalmente alguém que pertença ao sagrado catolicismo. Agora sinto um estranho arrependimento por ver a que ponto chegamos. Desobedecemos nosso pai e viramos assassinos de bispos e vários outros fiéis.

Fazemos isso por medo de morrer. O tabuleiro já matou nossa irmã como aviso e em breve pode ser nós.

E eu me pergunto se esse é mesmo o caminho certo a seguir.

Talvez devesse conversar com Wert sobre isso. Talvez estejamos fazendo tudo errado.

Nosso pai, nosso tio e nosso avô... nenhum deles se atreveu a matar alguém. Arriscaram sua vida, mas não obedeceram ao cruel jogo.

Sei que sou diferente, e muito sangue já espirrou em mim, mas está mesmo certo nos submetermos a isso?

Não posso mais continuar escrevendo, tenho uma missão a cumprir. Preciso alterar a bússola do francês para que ele indique as direções erradas e eles pensem que a cidade é anormal.

Quanto a eles conseguirem sair da cidade não há problema. Se o jogo aceitá-los com o vítimas, será impossível eles fugirem daqui. Porque uma vez que as pessoas viram reféns, elas não saem daqui jamais.

Em breve, todos eles acordarão e precisam estar jogados no meio da rua. Mal eles saberão que um veículo os trouxe de Scacci até aqui e que daqui eles não sairão vivos.

O Bispo continua falando, tirando a minha concentração.

Serei obrigado a machucá-lo para que volte a ficar inconsciente.

E quando Wert acordar, verei se compartilha de minha opinião de que é um verdadeiro holocausto o que estamos fazendo.

Porque da mesma forma que o tabuleiro não perdoa, sei que Deus também não.

* * *

- E esse é o fim - concluiu. - Depois disso ele não escreveu mais. Apesar de o diário ter sido devolvido a Wert, me lembro de cada linha e o relatei exatamente como me recordava. Provavelmente levou vocês até a praça ou espalhou-os pela rua e voltou para casa. Quando Wert percebeu que ele havia se apiedado e estava prestes a fraquejar e arruinar todo o plano, matou o coitado com tiros nas costas.

Ninguém sabia o que dizer. Finalmente, todo o segredo havia sido revelado.

A explicação para os mistérios daquele lugar acabara de ser contada.

Kaninchen encontrava dificuldades para raciocinar direito. Havia até esquecido sua felicidade por ter conseguido trancar Nicole no banheiro antes de escapar da explosão.

Nem mesmo Kan sabia de tudo isso que acabara de ouvir. Wert somente lhe dissera que o que estava escrito no diário era algo secreto e não podia ser lido por ninguém.

E que o esquema havia ruído. Agora todos conheciam as linhas que Willard Tye escrevera com uma antiga caneta tinteiro.

Jacques foi o primeiro a se manifestar:

- Antes de morrer, Willard disse “cuidado com o Kan”. Não sabia qual de nós era, mas alertou-nos caso víssemos esse nome escrito em algum lugar.

- Foi o que aconteceu - lembrou Samantha. - Nós o vimos escrito nas costas de Melina.

- Tudo bem que ele tenha se redimido no final, porém não se esqueçam de que ele também foi um assassino - disse Gary.

- Foi. Um assassino em vão, porque ninguém que ele matou fez as peças se moverem.

- É verdade, Jacques. O homicida que o tabuleiro esperava era Kaninchen. E não poderia ser outra pessoa que não a escolhida pelo jogo.

- Realmente - concordou.

- Mas por que o Kan?

- Bom, acho que é porque Wert o conhecia. Isso criou um vínculo entre os dois e, como a família de Wert tinha ligação com a cidade...

Depois de alguns minutos, o físico se dirigiu a Davis:

- Olhe, desculpe ter feito você acreditar que havia algo estranho na cidade por causa da minha bússola. De fato ela estava quebrada.

- Estava - concordou o advogado. - Contudo, há, sim, algo estranho nesse lugar. Não é sempre que a gente vê um tabuleiro com vida própria e que exige sangue de vez em quando.

Os outros deram uma risadinha sem graça.

- Quer dizer então, que, se não tivéssemos vindo para cá, nós iríamos nos encontrar no mesmo avião? - falou Gary.

- Pois é, de um jeito ou outro íamos acabar nos conhecendo - disse Davis. - Só que seria a caminho de...

- Lisboa - completaram Samantha, Jacques e Gary.

Mais alguns minutos se passaram. Depois de narrar a história do diário, Adam pareceu mais quieto do que o normal.

Quando Samantha se aproximou dele para perguntar o que era, ele pareceu estar esperando justo aquela oportunidade para desabafar:

- Eu já cumpri minha missão. Vim aqui com Nicole para contar-lhes sobre os mistérios da cidade, e já o fiz. Agora eu não deixarei Kaninchen me pegar. Não posso. Preciso honrar a memória de todos que chegaram comigo.

- Mas como vai fazer isso? - indagou Davis, que havia se aproximado com Jacques e Gary.

- Eu vou me matar - respondeu.

- O quê?! Não, Adam, você não pode! - disse o físico, aflito.

- Posso e vou. Se eu cometer suicídio, o tabuleiro não poderá considerar que eu fui assassinado. E eu espero que você - ele moveu seu dedo indicador na direção de cada um dos quatro - se dê muito, muito mal, Kaninchen!

Dito isso, Adam tentou irromper pela porta, mas foi impedido pelos outros que o agarraram. Nem Gary aprovava a decisão dele:

- Ei, camarada, essa não é a solução! Você acha mesmo que vai adiantar alguma coisa dar uma de Romeu?

- Acho! Eu vou arruinar os planos do Kaninchen, nem que seja a última coisa que eu faça!

- Vai ser mesmo a última, se você não usar o bom senso e se acalmar. Nós entendemos que a Nicole...

- Não fale dela! E me solta! Você nunca vai me ter, Kaninchen! NUNCA! - berrou Adam.

Desvencilhando-se de todos, ele conseguiu deixar a casa bege.

E enquanto Samantha, Jacques, Davis e Gary corriam atrás dele pelas velhas ruas de pedra, Adam tirou um punhal bolso e, parando de correr em um impulso, cravou-o em seu próprio peito.

Assim que ele caiu de joelhos, os outros quatro perceberam que não havia mais nada a fazer.

O último sobrevivente de um grupo de trinta e duas pessoas, a última peça preta que não o rei, havia acabado de dar um fim em sua própria vida.

(Continua...)

FELIZ ANO NOVO A TODOS!


Próximo capítulo: Quarta-feira, 02 de janeiro de 2008

3 comentários:

Tifon disse...

Espectacular esse post.

Grande imaginação que tu tens, hã?

Suspanse e ambiente de cortar à respiração até ao fim.

Um grande thriller.

Um feliz Ano Novo

Tifon disse...

Depois de ler mais uma vez o teu post, eu reli-o e compreendi melhor aquele segredo todo desde o príncipio.

ùltimos episódios ....?

Estou super ansiosa.


Que o ano comece super bem

Luiz Fernando Teodosio disse...

Finalmente tudo revelado. Putz que viagem. Deus, estatua que tem desejo de sangue,...
Mas até que gostei.
Eu não me mataria como o Adam, tentatia fugir de algum jeito. que imbecil!
Agora só 4.