domingo, 18 de novembro de 2007

Capítulo 27 - Réquiem

Aquele dia correu como os outros. Era difícil dizer em que estação do ano estavam; a única coisa que se observava era o calor constante, o afloramento de tantas cores nas árvores e chuvas não tão freqüentes. As ruas de paralelepípedo da cidade, não raro, esquentavam-se, confirmando a temperatura nos termômetros.

Dentro da confeitaria, que ficava um pouco distante do centro da cidade, existia um refrigerador; o qual, no entanto, não estava funcionando. A água que jorrava da praça também não era gelada o suficiente para refrescar as onze pessoas que se utilizavam do líquido.

Mesmo assim, pelo menos aquele estabelecimento contava com um pequeno cômodo onde dava para ser improvisado um chuveiro, utilizando-se da água da praça. Até um vaso sanitário se fazia funcionar.

Nesse mesmo local, por vezes na calçada em frente, todos passavam o dia. Apesar de manterem o medo e o receio, eles tentavam se distrair conversando ou pensando em outras coisas.

Joanne estivera refletindo sobre sua irmã Jacqueline. Apesar de esta não aparentar tão desesperada quanto devia estar, seus lábios quase não se mexiam. Também pudera: a modelo não conversava com ninguém, salvo algumas reclamações que fazia para a irmã. E Joanne estava começando a ficar preocupada.

Ela queria muito poder ajudar Jacqueline, porém não sabia como.

- Jackie - dizia ela - nós vamos sair daqui em breve, não se preocupe.

- Nós? - era a resposta. - Prefiro que eu saia sozinha. Talvez seja melhor para você ficar aqui. Não está tão feliz e radiante? O dia não está lindo para você? Não é amiguinha de todos?

Em outro canto, sempre isolado, estava Gary. O homem de cabelos pretos conversava ainda menos que Jacqueline, pois não tinha uma irmã. Não tinha amigos. Não tinha ninguém.

Uma das únicas vezes que se animou a dizer algo, foi para zombar do fato de Susan não saber o que era a Lanterna de Aristóteles, termo que ela encontrou em um escrito sobre curiosidades da vida marinha em uma lata de atum.

- Lanterna de Aristóteles - explicou ele com desdém - é uma estrutura de cinco dentes que animais como a estrela e o ouriço-do-mar têm dentro da boca.

Ao passo que, na maioria das vezes, o rancor e a frieza afastam as pessoas, com Gary e Jacqueline parecia que a história iria tomar outro rumo...

* * *

A noite caiu. Uma lua brilhante e cheia era, agora, a única coisa que se via no céu. Somente nove pessoas descansavam na confeitaria. Das duas que faltavam, uma delas era Kaninchen, que agora estava em uma casa distante, e a outra havia sido arrastada à força à mesma casa.

Nesse local onde estavam os dois, dias antes havia ocorrido o assassinato de um homem chamado Arthur. E, em poucos minutos, aquele cômodo estava prestes a ser infestado novamente com um cheiro cadavérico.

A vítima, dessa vez, era um homem loiro, de meia-idade e natural da Dinamarca.

- Acorde - ordenou Kaninchen, dando leves tapas no rosto do outro.

Quando Johann abriu os olhos, não precisou que ninguém lhe explicasse o que estava acontecendo. Observou em volta e a única coisa que viu foi um lugar empoeirado e escuro, com algumas mobílias.

- Então... é você? - perguntou o saxofonista.

- Quem vem assassinando a todos? É, sou eu sim - confirmou Kaninchen. - E hoje, mais alguém partirá dessa vida. Quer arriscar um palpite de quem seja?

- Por quê? - Johann conseguiu balbuciar, ainda meio aturdido.

- Ah, meu caro, isso está muito além de sua compreensão. É mais do que mera vontade minha! Somente obedeço a ordens.

- De quem?

- Ora, deixe de perguntas! - encerrou Kan - Está na hora de seu último gesto antes de morrer. Olhe, eu acho bem conveniente você ser bastante grato a mim, pois não são todos que podem viajar ao além fazendo o que gosta.

Enquanto Kaninchen saiu para buscar algo no cômodo ao lado, o saxofonista ofegava devido à forte poeira do lugar e à apreensão que tomava conta dele. Apesar de ele mal conseguir raciocinar perante sua situação, o músico tentava desesperadamente encontrar uma saída ou algum objeto que pudesse, pelo menos, cortar as amarras que lhe prendiam à cadeira manchada de sangue. Porém, era em vão. Obviamente, todos os utensílios que pudessem proporcionar uma fuga haviam sido retirados dali, se é que um dia tiveram seu lugar naquela sala.

Sem muita demora, Kaninchen voltou segurando algo que para Johann era muito familiar: um saxofone. Mais do que isso, o instrumento era o próprio do músico.

- Mas... o que...? - ele tentou perguntar abismado.

- Eu lhe disse - Kaninchen falou. - Como seu último ato, lhe permitirei tocar seu saxofone. Morrerá fazendo o que mais lhe agrada!

Johann, ainda perplexo, procurava entender qual era o plano daquela pessoa tão fria à sua frente. O verdadeiro intento de Kaninchen, porém, não era ouvir o outro tocar; tudo fazia parte de um sádico estratagema.

- Por que me deixará usá-lo?

- Simplesmente porque quero ouvi-lo tocar! - foi a resposta.

Após revirar o pesado instrumento de metal nas mãos para admirá-lo, Kaninchen colocou-o no chão, desamarrou Johann e, apontando-lhe uma arma, ordenou que o pegasse.

- Vamos, lá - incentivou. - Toque-o.

Receoso, sem saber o que fazer, o saxofonista olhou para a cara aparentemente sorridente da pessoa parada diante da cadeira e voltou a olhar para o instrumento às suas mãos. Deveria ele tocar alguma música?

- Ora, Johann! - protestou Kaninchen - Não se acanhe! Vamos, toque alguma música. Por que você não me dá o prazer de ouvir o “O Lago dos Cisnes”, de Tchaikovsky?

O Lago dos Cisnes?, Johann estranhou.

- Por quê? - perguntou. - Não é uma música que se possa tocar apenas com sax.

- Se vire! Olha, se você não quiser tocar tudo bem. - replicou Kaninchen. - Eu já estou farto de você mesmo! Mas saiba que se eu quisesse eu poderia muito bem pegar meu revólver e dar um tiro na sua cabeça agora mesmo.

Como essa idéia não agradava nada o músico, ele decidiu satisfazer a vontade de quem havia assassinado muitos que conhecera.

Imediatamente, antes de começar a tocar, ele tentou se lembrar partitura da música. Mi, Fá, Si… não, não… Mi, Sol… não também… Mi, Lá, Si, Dó, Ré…

E pouco a pouco todas as notas do balé do compositor russo foram surgindo em sua cansada cabeça.

Assim que Johann pôs a boca no saxofone e, sob o riso de Kaninchen, se pôs a tocar, algo muito estranho aconteceu. O primeiro sopro do saxofonista revelara que o bocal do instrumento estava repleto de um pó o qual, acidentalmente, o músico ingeriu um pouco.

- O que é isso? - ele perguntou.

- Não vai querer saber. Vamos, apenas toque.

Sentindo que não havia escolha, o outro continuou a tocar.

A cada nota soprada pelo saxofone era como se O Lago dos Cisnes fosse tomando forma e ecoasse naquele cômodo mal-iluminado e sombrio.

Ingerindo uma quantidade cada vez maior do pó no instrumento toda vez que o soprava, o ex-integrante do At Night começava a desconfiar do motivo pelo o qual estava fazendo aquela apresentação particular. De uma coisa ele não tinha mais dúvida: de alguma forma, essa poeira o estava envenenando.

E como uma confirmação ao pensamento de Johann, na metade do “segundo movimento” ele largou o saxofone no chão e começou a entrar em desespero. Sentia algo que não conseguia explicar, somente lhe parecia que estava prestes a morrer. Nem falar era possível mais para ele.

- Bom, parece que o arsênio está começando a fazer efeito. - observou Kaninchen. - É uma pena, você toca realmente muito bem. Também, não é pra menos, o saxofone é um instrumento muito interessante, não?

Enquanto escutava vagamente, Johann lutava contra a estranha sensação de sufoco que sentia.

- Sabia - continuou - que ele foi um instrumento que não evoluiu com o passar dos anos, somente foi inventado? Infelizmente tive que colocar uma grande dose de arsênio em pó no seu interior. Para um efeito mais rápido, entende? E é claro que sua tão frágil saúde contribuiu bastante...

Aos poucos o som da voz de Kaninchen ia sumindo e Johann não ouvia mais nada além das batidas aceleradas de seu coração. Sua última lembrança foi do rosto da mulher que amava e que nunca mais veria.

E, então, o saxofonista fechou seus olhos e seu coração parou de pulsar.

Johann Bohr havia acabado de morrer.

(Continua...)


Próximo capítulo: Quarta-feira, 21 de novembro

2 comentários:

Tifon disse...

Credo! Que forma tão horrível de morrer...

Onde é que foste buscar tanta criatividade?
No CSI, foi?

Excelente post.

Luiz Fernando Teodosio disse...

Esse Kan tem estilo pra matar. To começando a virar fã dele.