quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Capítulo 26 - Sonhos e Sinfonias

O concerto começava às 21 horas. Johann Bohr aguardava ansioso no camarim junto com os outros integrantes de seu grupo. Apenas alguns minutos separavam a banda de blues At Night de sua apresentação em um famoso pub no centro de Scacci.

Entretanto, nenhum dos músicos estava preocupado com isso. Todos estavam absortos ouvindo atentamente Johann contar seu estranho pesadelo.

- Daí, o sonho mudou e começou a fazer sentido. Eu estava em um penhasco e, do nada, ela apareceu.

- Quem é “ela”? - perguntou o pianista.

- Ela, a chinesa. Não sei como se chamava, mas era muito bela e vinha em minha direção flutuando. Eu continuava na ponta de um penhasco, porém quando ela chegou até mim e pegou minhas mãos, a cena mudou.

Mesmo ainda não vendo importância no sonho de seu colega saxofonista, os demais músicos fingiam interesse e o deixaram continuar. Somente o baixista se mostrava pouco interessado e brincava com um isqueiro, sem olhar para os outros.

- E é aí que a coisa começa a ficar mais estranha - continuou Johann. - De repente, eu me vi sentado eu uma mesa em frente à... adivinhem o quê!

- Um tabuleiro? - arriscou o baterista.

- Exato! Um tabuleiro, e de xadrez. À minha frente estava um vulto que não conseguia distinguir, e ao lado dele estava a chinesa. Já à minha esquerda também estava alguém e, curiosamente, era a minha ex-mulher. Até que em um determinado momento, meu adversário comeu um dos meus peões e... o jogo acabou!

- Xeque-mate? - indagou o tocador de gaita.

- O engraçado é que não, Eliot - respondeu Johann. - Meu rei estava longe de ficar encurralado, parece que eu saí da partida antes de ela acabar... Quando o jogo terminou ocorreu que a chinesa começou a cantar. Mas era um canto bastante estranho, algo como um silvo melodioso vindo de uma mulher com voz suave, envolvente.

Ao passo em que todos aguardavam o desfecho da história, Johann se esforçava para buscar em sua memória os detalhes de seu sonho.

- E, no final, a coisa ficou ainda mais assustadora! À medida que a paisagem ao meu redor ia sendo absorvida por um ponto às minhas costas, o vulto com quem eu joguei xadrez virou para mim e disse: “ainda não acabou, Johann. Esse é apenas o começo.”. Foi aí que...

- Foi aí que o quê?

- Eu acordei. - lamentou o saxofonista.

Todos ficaram em silêncio. O primeiro a dar sua opinião foi o pianista, e pareceu que todos concordavam com ele:

- Olhe, Johann, nós respeitamos sua intuição de que há algo perigoso por vir, mas, entenda, foi só um sonho.

As últimas palavras foram pronunciadas lentamente para que o tocador de saxofone compreendesse, no entanto ele se recusava a admitir a idéia.

- Mas vocês, não entendem? Está evidente que...

Nesse instante, interrompendo a fala do músico, um homem entrou no camarim onde eles estavam e anunciou: “dentro de um minuto vocês entrarão”.

Eles assentiram com cabeça e se voltaram para pegar seus instrumentos.

Johann não disse mais nada. Preferiu não insistir no assunto.

Ele simplesmente agarrou seu saxofone e se dirigiu com os amigos em direção ao palco do pub.

E essa foi a última vez que Johann Bohr se apresentou. Na manhã seguinte, ele acordou em uma cidade, no mínimo, estranha, de onde não conseguiria sair jamais.

* * *

Johann acordou com dores na coluna, devido ao desconforto que era dormir em uma confeitaria. Como ninguém ainda havia acordado, o homem viu aí sua chance de tirar a limpo uma questão que o atormentava bastante desde que chegara na cidade.

Percorrendo os corredores do lugar, o saxofonista achou quem procurava.

Assim que percebeu que Lin Tseng ainda dormia, pestanejou um pouco antes de acordá-la. Mesmo assim, sabia que era preciso.

Logo que a chinesa abriu os olhos e percebeu o que estava acontecendo, Johann lhe disse:

- Lin, você pode me entender?

A moça continuou calada, olhando fixamente para o homem.

- Lin? Por favor, Lin, eu preciso muito que você fale... Você consegue se comunicar comigo?

A chinesa permaneceu sem nada responder.

- Olhe, antes de vir para cá eu tive um sonho. E eu acho... eu acho, Lin, que você estava nele!

Sem manifestações de entendimento.

Johann, enquanto via o que poderia ser sua única chance se esvaindo, deu sua última cartada.

- Bem, Lin - ele disse - Eu bem que tentei lhe avisar. Lamento que você vá morrer hoje...

A chinesa, não conseguindo se conter, arregalou os olhos assustada. Johann sorriu.

- Eu sabia! - riu ele. - Sabia que você estava fingindo esse tempo todo! Você nos entende, não é, Lin? E, com certeza, ainda fala o nosso idioma!

Lin abaixou a cabeça. Finalmente, vendo que não poderia mais manter sua farsa, ela falou:

- Tem razão, Johann, eu menti. Falo sim, perfeitamente, e entendo tudo o que vocês falam.

- Mas por quê? - indagou o outro. - Por que você mente para todos nós?

- Bem, - ela redargüiu - isso é uma coisa pessoal, não posso revelar a você.

Mesmo assim, o saxofonista ainda estava exultante.

- Olhe, eu preciso lhe perguntar uma coisa. Um dia antes de vir para cá eu tive um sonho com essa cidade. Sonhei com o tabuleiro; com um adversário, que suponho ser o Kan; e com uma chinesa, que imagino ser você.

- Eu?

Johann assentiu com a cabeça.

- Sim. E, no sonho, você cantava uma música... uma sinfonia bela, mas atemorizante. Você sabe alguma coisa sobre isso?

- O que você está insinuando? - perguntou a chinesa. - Que eu sou uma cantora?

- Eu não sei... qualquer coisa relacionada ao assunto. Porque até agora eu não consegui explicar o fato, e eu acho que isso talvez possa ajudar a salvar a mim, ou a todos nós!

Lin Tseng recuou. “Será que devo contar a ele?”, ela pensou. “Melhor não... se eles soubessem, provavelmente me usariam como um mero objeto!”.

- Desculpe não poder lhe ajudar mais, Johann, porém, eu não sei de nada que tenha relação com o que me contou.

O saxofonista apenas levantou-se e disse:

- Bom, valeu a tentativa. - E, antes que ela pudesse falar algo, ele completou - E fique tranqüila que não contarei seu segredo a mais ninguém.

Dito isso, Johann se afastou, deixando Lin se sentindo, ao mesmo tempo, culpada e aflita.

Se ele dissesse a alguém sobre a sua mentira, todo o seu plano cairia por água abaixo, e ela não poderia deixar isso acontecer.

Ela, então, também se levantou decidida. Estava preparada para impedir que Johann estragasse seus planos, a qualquer custo...

(Continua...)


Próximo capítulo: Domingo, 18 de novembro

domingo, 11 de novembro de 2007

Capítulo 25 - As Peças Pretas

Aquela manhã não foi, para aquelas pessoas, o que se poderia chamar de tranqüila. Logo que acordaram, notaram o sumiço de um dos homens. Nicholas.

Apesar de o viúvo ter sido procurado em todos os lugares da confeitaria, ele definitivamente não estava mais lá. Assustados, com um palpite do que poderia ter acontecido com ele, os onze organizaram um grupo de busca, como fizeram com o bispo dias atrás. O pensamento que atordoava a todos era óbvio: Kaninchen havia agido novamente.

Após vinte minutos de procura, Susan, Lin e Anthony acharam Nicholas. Morto.

Quando a jornalista viu o homem na praça, ela se questionou se ele havia sido realmente assassinado. Isso porque a cena era um tanto quanto clássica e peculiar: o ex-policial estava dependurado, a uns 50 cm do chão, por uma corda presa a uma das árvores. Abaixo de seus pés havia um banquinho caído, aparentemente derrubado.

Anthony, Susan e Lin estancaram perante a imagem. Havia sido Nicholas assassinado ou ele havia mesmo cometido suicídio? Afinal, sua mulher havia morrido de modo brutal e ele não tinha certeza se retornaria para seus filhos, além de aparentar bastante amuado nos últimos dias.

Seria motivo suficiente para ele se suicidar? Todas essas questões resumiam-se em uma só: quem havia derrubado o banquinho?

Agora todos estavam reunidos ao seu redor e as opiniões divergiam-se.

- Ah, eu acho que foi suicídio, sim, porq... - dizia Anthony, antes de ser interrompido por Edwin.

- Não, provavelmente não foi. Nicholas era um homem equilibrado, não faria uma coisa dessas.

- E outra, - interveio Susan - ele ainda tinha esperança de reaver os filhos, Nicholas não os abandonaria assim por conta de sua própria angústia.

- Bom, pelo menos ele deu fim a todo seu sofrimento.

- Se nós olharmos no tabuleiro não dá para saber se foi ele mesmo quem se enforcou? - questionou Davis.

- Provavelmente não. - respondeu Jacques. – Primeiro, porque mesmo se foi homicídio, o rei preto sempre volta ao seu lugar. E segundo, nem sabemos o que acontece coma uma peça que representa alguém que se suicida.

Cansada de ouvir as opiniões de cada um, Jacqueline - irmã de Joanne -, apressou-os:

- Olhem, independente do que quer que tenha acontecido, vamos enterrar ele logo!

E meia hora depois, o corpo de quem um dia trabalhou como delegado estava colocado sob fúnebres palmos de terra.

* * *

Entediantes. Essa é bem uma palavra que definiria as tardes naquela cidade. Basicamente não havia nada para fazer, a não ser conversar. Exatamente por isso, algumas pessoas acabaram ficando próximas de outras. Bem próximas, em alguns casos.

Um desses exemplos eram Susan e Anthony. Desde que vira Samantha, Anthony ficara deslumbrado pela moça e tentou, sem sucesso, aproximar-se dela. Parecia-lhe que ela só queria saber de Davis.

Todavia, já que Susan estava mostrando um grande interesse por ele, Anthony acabou esquecendo a arqueóloga e fazendo bastante amizade com a jornalista. Naquela tarde em que Susan estava meio abatida com a morte de Nicholas e temia que o mesmo estivesse próximo de acontecer com ela ou com Anthony, a moça e o gerente conversavam em um local isolado na confeitaria.

- Anthony, eu preciso lhe confessar uma coisa.

- Confessar?

- É. Antes que seja tarde demais.

- Tarde demais por quê? - indagou o rapaz.

- Ah, você sabe, nenhum de nós está seguro aqui! Assim como já aconteceu com seis pessoas, o próximo pode ser eu ou...

- Ei, sem pessimismo, O.K.? Em breve nós dois vamos sair daqui e continuaremos vivendo nossa vida normalmente, tenho certeza!

- Tá, mas e se não acontecer? Nunca se sabe, não é? Então, eu precisava te dizer algo e é melhor que seja agora. - falou Susan, aflita.

- Olhe, Susan, vou lhe poupar palavras: eu sei o que é.

- Sabe?

- Sei. - respondeu Anthony.

- E você...

- Eu não sei. Eu gosto muito de você, Susan, mas, poxa, eu estou tão indeciso! Nossa vida aqui nessa cidade é tão...

- Incerta? - sugeriu a moça.

- É! E eu não tenho certeza se estou preparado para entrar em um relacionamento agora.

- Você tem medo que eu seja a assassina?

- Claro que não, Susan! É só que...

- Então me beija. - pediu Susan.

- O quê?

- Me beija, pra provar que você confia em mim.

- Mas eu já te expliquei, Susan, é que...

Nicholas, entretanto, não teve tempo de terminar a frase. Antes que o fizesse, ela foi em sua direção e beijou-o. Talvez por temer que esse fosse seu último beijo, ou por nutrir por ela uma grande admiração que pudesse se revelar uma paixão ainda adormecida, Nicholas nada fez para impedir o gesto inesperado e retribuiu-o longamente.

* * *

Era noite daquele mesmo dia e um homem estava amarrado a uma velha cadeira. Ele não pertencia ao mesmo grupo que agora adormecia em uma confeitaria e muito menos era Wert ou Kaninchen. Este último, no entanto, estava parado em frente ao prisioneiro, pronto para fazê-lo falar.

- Para começo de conversa, como é mesmo o seu nome?

- Arthur - respondeu o homem preso à cadeira, ainda um pouco atordoado.

- Hmm. Veja bem, Arthur, eu vou ser bem sincero com você: eu não estou com muita paciência hoje. Portanto, eu vou lhe perguntar uma vez só e espero que você coopere comigo. - ameaçou Kaninchen.

- Ah, cala a boca! Acabe logo com isso! - desafiou Arthur.

Irritado com a ousadia, Kan não pensou duas vezes antes de apontar a arma que estava segurando para o pé do outro e atirar.

O grito de Arthur fez-se ouvir em todo aquele aposento velho e mal-iluminado em que estavam.

- Respeite-me, ouviu! - ordenou quem havia atirado.

Mesmo com o pé direito sangrando, o outro não deixou seu sarcasmo de lado.

- Você é quem se chama Kaninchen, certo? Coelho, não é o que significa?

- Como sabe?

- Um dos homens que você matou ontem era alemão e ele nos disse há algum tempo. Hanz era como se chamava. - respondeu Arthur.

- Quantas pessoas ainda restam no seu grupo? - indagou Kan, com um tom ameaçador.

- Oito, como você provavelmente sabe só de olhar naquela estátua da praça. Bom, sete agora, considerando que eu estou aqui. Acho que a probabilidade de você querer me matar é grande. Ou estou enganado?

- De modo algum - sorriu Kaninchen ao perceber que o outro já havia entendido qual era seu destino. - Na verdade, dentro de poucos minutos você com certeza vai estar morto, de um jeito ou de outro. Agora, quem escolhe se quer sofrer ou não, é você.

- Ora, Kan, você sabe muito bem que eu não trairei meus amigos! Não é uma escolha minha, então.

- Não seja tolo, moleque! Eu só quero saber uma coisa: onde eles estão escondidos?

- Só isso? Você não quer o nome e detalhes sobre a vida pessoal de cada um também? - sorriu.

Aquele senso de humor vindo de um prisioneiro prestes a ser morto começava a aborrecer Kan.

- Responda logo! Onde é o refúgio de vocês?

- Refúgio? Que isso... lá é apenas um lugar de confraternização e encontro entre pessoas que são perseguidas violentamente por você!

Os nervos de Kaninchen pulsavam mais fortemente agora e ele não sabia se agüentaria continuar ouvindo as zombarias do outro.

- Essa é sua última chance, desgraçado. A única coisa que eu quero saber é em que lugar fica o esconderijo de vocês!

- Kaninchen... não foi você que matou os primeiros do meu grupo, foi? Você sabe, né, trouxeram uns 30 de nós de uma só vez e começaram a matar. No entanto, somente de uns tempos para cá é que a morte de meus colegas começou a provocar o sumiço de peças de xadrez, sei lá porque.

Enquanto Arthur falava, Kaninchen se mantinha calado. O rapaz continuava:

- Mas antes disso, quando alguém foi assassinar os primeiros do meu grupo, eu vi a cara da pessoa de relance. E definitivamente, não era você! Quem era então?

- Não te interessa! - respondeu Kaninchen por fim - ME DIZ DE UMA VEZ, ONDE VOCÊS SE ESCONDEM?

- Sabe, - começou Arthur, ignorando a perda de paciência de Kaninchen - no nosso grupo há uma mulher que diz ver o futuro nas paredes. Engraçado, né?

Agora Kaninchen já tremia de raiva e apontava a arma para Arthur. Sem se intimidar, ele continuou:

- Ela afirma que é só mentalizar alguém e o destino da pessoa aparece na parede em forma de borrões coloridos. E sabe o que ela previu pra você, Kaninchen?

Nesse momento ouviu-se cinco tiros e Arthur não pôde continuar a falar. O sangue agora escorria também das costas do rapaz e ele não mais respirava.

Não fora Kaninchen que o havia matado.

Assim que o corpo do rapaz tombou para frente, Kan pode ver que Wert ainda segurava sua arma.

- Por que fez isso? - perguntou.

- O quê? Por acaso você queria saber o seu futuro, Kani? - caçoou Wert. - Ora, eu não estava mais agüentando esse idiota dando uma de engraçadinho.

- É? O problema é que nós combinamos que eu o interrogaria. Aliás, você nem deveria estar aqui! - falou Kaninchen, ríspido.

- Bom, mas já que estou não adianta ficar reclamando. Você sabe que ele não ia revelar nada, a única coisa que ele estava tentando fazer é te iludir, idiota!

E enquanto dizia isso, Wert colocava mais munição em sua pistola, antes de tirar do centro da sala a cadeira em que jazia o corpo de Arthur.

Kaninchen, sem dizer nada, pegou sua própria arma de cima da mesa e saiu pela noite afora em direção à confeitaria.

(Continua...)


Próximo capítulo: Quarta-feira, 14 de novembro