domingo, 26 de agosto de 2007

Capítulo 14 - Boletim de Ocorrência

Nicholas caminhava tranqüilamente em direção à sala de seu superior. Obviamente ele não podia prever o futuro e, por isso, nem passava pela sua cabeça a idéia de que conheceria a mulher da sua vida - futura mãe de seus filhos - em alguns segundos, e muito menos que ficaria preso com ela em uma cidade tão intrigante daqui a doze anos.

Naquela época ele ainda esbanjava a jovialidade de um rapaz de vinte e sete anos e sua perna direita não exercia a função de alojar uma bala de revólver.

Nicholas abriu a porta da sala e notou duas pessoas sentadas no local. Uma delas ele sabia quem era; mais conhecido como delegado Cravens, Rickey Cravens administrava todo o distrito policial da cidade, e estava sentado em uma grande cadeira almofadada. Talvez pelo fato de ostentar um pomposo bigode e um cabelo semigrisalho, a aparência dele era excessivamente garbosa e respeitável. Desde pequeno, o delegado sonhava com seu atual cargo e, por isso, cursou a faculdade de Direito; desejava, um dia, estar sentado onde se encontrava naquele momento.

O outro alguém que ocupava a sala era uma bela mulher. Um pouco mais velha que seu futuro marido, mas caracterizada pela sua jovialidade, Lisa Willette olhava fixamente para o homem que acabara de abrir a porta e Nicholas retribuía o olhar.

O homem se sentou ao lado da moça e em frente ao delegado. Não fazia idéia porque havia sido chamado ali.

- Policial Gilmore, - começou o delegado Rickey - você sabe que minha função é ajudar as pessoas e garantir-lhes total proteção. Sonhei em fazer isso a minha vida toda e é por isso que estou aqui. No entanto, há três operações criminais envolvendo o governo em que esse departamento está trabalhando e, infelizmente, não me sobra tempo para dar minha assistência a casos paralelos.

Nicholas sabia que era verdade cada palavra que havia sido dita. De fato havia três ocorrências judiciais em aberto e sempre o distrito era obrigado a dar preferência aos casos que envolviam questões políticas.

- E é por esse motivo, policial, - ele continuou - que estou lhe designando para cumprir a missão de ajudar a admirável senhorita Willette.

O futuro cônjuge de Lisa ficou feliz em poder auxiliar a dama que sentava ao seu lado. Ele sorriu, e perguntou gentilmente à moça qual era o problema.

- Bem, minha tia desapareceu e eu preciso de ajuda para encontrá-la. Eu sou a sua única parenta na cidade! - ela respondeu.

Até àquela hora, Nicholas nem havia percebido o quão Lisa Willette parecia preocupada e aflita. Um sorriso murchou na cara do policial e ele se pôs prontamente a ampará-la no que fosse preciso.

Dias depois, a tia da moça foi encontrada, porém ela acabou falecendo após duas semanas. Abalada com a morte de uma das únicas pessoas que conhecia na cidade, Lisa aceitou todo o consolo que Nicholas lhe propiciava. E foi assim o início daquele relacionamento. Posteriormente, eles se casaram e tiveram dois filhos.

Todavia, todas as reminiscências ligadas a essa história agora eram encobertas por uma bruma de desespero que começou a se formar assim que o casal se materializou, subitamente, naquela cidade. E era nessa cidade onde eles se encontravam agora: mais especificamente deitados em desconfortáveis cadeiras em um restaurante finlandês.

* * *

Eram sete horas da manhã e todos já haviam levantado. Não havia um que não sentia uma incômoda dor na coluna por ter dormido em duros assentos ao invés de um confortável colchão. À medida que cada um abria os olhos, a realidade de onde estavam e o que havia acontecido até então, caia como um tijolo em suas cabeças.

E não era um tijolo comum, ele era vermelho, cor de sangue.

A maioria dos seres humanos se acostuma com sua vida rotineira de tal forma, que, se ela muda bruscamente, como aconteceu para aquelas quinze pessoas, o desespero toma conta de suas ações, fazendo-as ser ilógicas e precipitadas. Provavelmente havia meios mais eficazes de se sobreviver em um lugar como aquela cidade, porém o pensamento de ninguém conseguia se concentrar nisso. Somente um sentimento debelava-os: o instinto de sobrevivência.

Se o Bispo Di Ravenna não tivesse saído do restaurante Ravintola na noite passada, ele também poderia estar vivo e com seus dois olhos unidos à cabeça. Todavia, o impulso de proteger um segredo que somente deveria revelado a quem merecesse, coagiu o beato a tomar uma atitude tão arriscada que acabou lhe tirando a vida.

Também Ian estaria a salvo se não houvesse se distanciado do grupo apenas para dar uma volta e se aventurar pelos arredores por não haver se conformado com a ausência de um modo de sair daquela cidade.

Agora, porém, todas as quinze pessoas que estavam naquele restaurante de paredes vermelhas, assentiram em permanecerem unidos pela sua própria segurança. Eles realmente tinham a crença de que dentro do estabelecimento estariam seguros.

Como ninguém havia encontrado algo mais para comer, cada um teve que se contentar com um pequeno pedaço dos cinco mistos frios que haviam restado, uma colherada do creme esverdeado e um gole de duas garrafas de vinho. Apesar da advertência de Melina que deveriam estocar um pouco de comida, da exposição da crença de Jacques que não sairiam de lá jamais e da autoconsciência de cada um alertando-os da necessidade de manterem um pouco do alimento por precaução, em somente um dia eles haviam acabado com tudo o que havia no restaurante.

Nas primeiras vinte e cinco horas que passaram na cidade eles não haviam encontrado nada para comer. Por isso, no dia seguinte de manhã, ao acharem o Ravintola, consumiram quase todos os mantimentos que lá havia. Agora, dois dias depois de terem aparecido no local, e com fome, foram obrigados a findar com a comida remanescente.

E, para piorar a situação, não havia vestígio de água em nenhum lugar da cidade. Nem mesmo no banheiro do restaurante haviam canos ligados a uma caixa d’água.

Isso, adicionado ao fato de que o consumo excessivo de vinho por parte de alguns havia deixado-os com a garganta sedenta de sede, estava começando a parecer a cena de um árido pesadelo.

- Só há uma solução. - apontou Luis Filipe a respeito do assunto - Da próxima vez em que chover, teremos que coletar água da chuva para utilizá-la.

Principalmente agora que não havia mais nada para se beber, eles sabiam que precisavam encontrar algo para saciar sua sensação de falta de água urgentemente. O real problema era depender de um fenômeno natural que não podia ser previsto por eles.

Através de muitas mímicas e inúmeras tentativas de comunicação, acabou-se descobrindo que a oriental Lin Tseng já havia trabalhado como metereologista em um canal televisivo chinês. Para o azar de todos, ao observar o céu, Lin fez um gesto que, considerando-se a cara de desapontamento da moça, aparentemente significava que não iria chover tão cedo.

Mesmo com sede e temendo atravessar a porta do restaurante Ravintola, todos acabaram concordando com a sugestão de Samantha. “Precisamos enterrar os corpos”, ela disse, “pior do que terem sido assassinados tão friamente, será se os deixarmos ao relento, no meio da rua”.

Os quinze, então, temerosos, rumaram em direção aos corpos. Edwin e Davis ficaram encarregados de levar o bispo, e Anthony e Luis Filipe foram incumbidos de conduzir Ian. Decidiram por sepultá-los na praça.

Ao lado das árvores do local havia solo com terra fofa e úmida (por causa da chuva da noite passada), o suficiente para enterrar os dois homens. Sem pás ou nada do gênero para auxiliar na escavação, eles ficaram felizes que Joanne havia lembrado desse detalhe e pegado algumas tábuas de madeiras e dois baldes de latão, jogados em um canto do restaurante.

Ao chegarem à praça, iniciaram a tarefa. Contrariando a expectativa de todos, até Gary se dispôs a ajudar a cavar as covas.

Depois de haverem se passado alguns minutos, Jacques, ofegante, fora obrigado a parar; estava exausto demais para continuar.

Minutos antes, todos deram uma olhada de relance na estátua e presumiram que, aparentemente, nada havia mudado; no entanto, agora que o físico olhava-a atentamente, percebeu que havia, sim, algo de diferente.

Receoso, ele começou a contar quantas peças havia no tabuleiro.

Um, dois, três, quatro...

Quando chegou ao fim, desacreditando seu cálculo, Jacques começou a recontar.

Assim que terminou novamente, seu coração palpitava mais do que nunca.

Ambas as vezes em que fez a contagem, ele havia chegado à mesma conclusão: não havia mais duas peças faltantes no tabuleiro.

Havia três.

(Continua...)


Próximo capítulo: Domingo, 02 de setembro