domingo, 30 de dezembro de 2007

Capítulo 39 - As Revelações do Diário, parte II

19 de Agosto

Continuamos aqui na cidade. Hoje fomos à praça observar melhor a estátua, todas as peças ainda estão na posição inicial. Ainda é difícil definir se eu ou Wert temos uma peça correspondente no jogo. Da última vez em que presenciamos uma partida, éramos crianças.

20 de Agosto

Está complicado chegarmos a um acordo sobre quem vamos trazer à cidade e como iremos selecionar essas pessoas. Wert diz que basta termos uma lista com nomes aleatórios.

21 de Agosto

Já sabemos os nomes daqueles que traremos para a cidade. Hoje pela manhã fui ao aeroporto da cidade de Scacci e consegui uma lista com trinta e duas pessoas que embarcarão, ou melhor, embarcariam em um vôo amanhã.

Estamos fazendo os preparativos e, assim que o gás chegar, já poderemos agir.

Adam parou para indagá-los:

- Nos registros dos três dias seguintes ele só fala a respeito do gás e do método que usou para raptar nós do primeiro grupo. Tudo bem se eu pular essa parte?

Os outros assentiram com a cabeça.

25 de Agosto

Já estão todos na cidade. Trinta e duas pessoas e mais eu e Wert. Ao que parece eles estão bastante confusos. Aparentemente crêem que chegaram até aqui por magia e admiram a beleza da estátua na praça. Infelizmente, não podemos matá-los de uma só vez. O tabuleiro não permite. Ele quer que poucas mortes ocorram por dia, como se pudesse desfrutar calmamente de cada gota de sangue derramado.

Daqui algumas horas, pegarei os primeiros e vamos ver o que acontece.

26 de Agosto

Estou nervoso, apreensivo. Matei dois homens e uma mulher ontem à noite e a estátua nem se moveu.

Não era assim que devia funcionar. Wert acha que não teremos que arrumar substitutos para eles. Diz que nós dois temos peças correspondentes no jogo e, portanto, há que ter somente trinta vítimas.

Quando perguntei se no final não haveria de restar somente uma peça e não duas, Wert desconversou.

28 de Agosto

Mau encontro sossego para escrever em meio aos berros e lamentos de Wert. Assassinei mais dois na noite de ontem e o jogo de xadrez continua intacto.

Não poderei continuar agora, pois corro o risco de Wert querer pegar esse meu diário para jogá-lo na lareira.

29 de Agosto

Estou atônito. Escrevo somente para aliviar a tensão e ver se encontro alguma solução para o nosso problema.

Vários já estão mortos e o tabuleiro nem reage. Para piorar, o grupo começa a ficar na retaguarda: temeroso, desconfiado com tantas mortes.

30 de Agosto

Wert disse que, talvez, se pudéssemos nos recordar de quando nós dois vimos o tabuleiro jogar, poderíamos saber o que está errado.

Resolvi escrever a história pois sempre raciocínio melhor enquanto estou escrevendo. É como se, conforme minha caneta risca o papel, engrenagens na minha mente começassem a girar.

Tudo começou alguns anos depois do fim da Segunda Guerra.

Naquela época tudo era diferente. Milhares de pessoas moravam aqui e o comércio florescia. Não era uma cidade grande e nem conhecida, somente um pequeno ponto na divisa da França com a Itália. Muitas vezes pessoas de diversas nacionalidades passavam pela cidade e acabavam ficando ou voltando mais tarde.

Lembro-me muito bem de um senhor finlandês e sua mulher que resolveram ficar e até fundaram um restaurante aqui. Hoje o Ravintola está completamente abandonado. Esses dias fui lá e só restava uma massa verde na geladeira que nem faço idéia do que seja. Não sei nem mesmo se é comestível. Como não temos refrigerador, guardei mistos frios e vinhos no restaurante.

O resto da comida, armazenamos aqui em cima de nossa casa, onde tem dois quartos enormes e uma grande dispensa.

Enfim, naqueles anos do começo da Guerra Fria eu e meus irmãos ainda éramos crianças. Foi quando o tabuleiro fez o seu pedido.

Não sabemos com que freqüência isso ocorre, mas se passam anos e anos até ele querer sangue novamente.

O modo com que ele se impôs não foi nada sutil: do nada as pessoas começavam a morrer na nossa cidade, seja por problemas cardíacos, falta de ar, ou convulsões.

Foi então que nós ficamos conhecendo a lenda. Não me lembro muito bem dela, mas me parece que era sobre um dos deuses nórdicos que, de tempos em tempos, precisava que muito sangue fosse derramado ao seu pedido. E, como ele era um exímio jogador de xadrez, foi essa a forma com que lhe representaram: duas pessoas e um tabuleiro.

Achamos...

- Infelizmente, essa parte estava rasgada. Mas foi só um pequeno pedaço, o resto da história dele está intacto. - anunciou Adam.

...nome da pedra com que a estátua foi feita eu não me lembro bem, no entanto, o efeito sempre foi extraordinário. Ela reflete a luz do Sol de um jeito espantoso.

É certo que ninguém na cidade acreditava nessa lenda, mas quando a chacina começou, eles viram que era mesmo verdade. Foi então que um dos moradores que não fugiram, um dos amigos de meu pai, resolveu obedecer ao mito e começou a assassinar pessoas com as próprias mãos.

Aí as peças começaram a se mover.

Na primeira noite em que elas se mexeram, porém, meu pai ordenou que eu e meus irmãos saíssemos da cidade na carroça do senhor espanhol, dono da confeitaria.

E assim fizemos. Nunca mais vimos nosso pai novamente.

Vou ter que parar agora. Wert acaba de chegar e, pelo sorriso no rosto, parece que tem uma solução.

04 de Setembro

Não tive tempo para voltar a escrever esses dias. Estava bastante ocupado com os preparativos do nosso próximo seqüestro.

Wert crê que se o grupo que está na cidade representa as peças de uma cor só, temos que trazer outro grupo para representar o outro lado, os adversários.

Wert também falou em trazer uma pessoa para assassinar os integrantes dos dois grupos. Disse que não pode ser nenhum de nós e que não sabe como o tabuleiro escolhe quem será o homicida, mas ele escolhe.

Não me disse se é homem ou mulher, mas falou que já conhece esse alguém e que deverá estar infiltrado no grupo que trarei em breve.

Também falou que lhe inventou uma alcunha: Kaninchen.

05 de Setembro

Já chegaram mais dispositivos com gás alucinante e, agora, basta arranjar outra lista de passageiros de algum vôo. Serão dezessete pessoas dessa vez.

O grupo que trouxemos há algumas semanas se encontra escondido.

Eu...

- A continuação foi consumida pelo fogo - lamentou Adam. - O próximo registro data da madrugada da chegada de vocês.

08 de Setembro

Já estão todos aqui; inconscientes, claro. Como no outro grupo, as pessoas são todas muito diferentes. Tem velhos, jovens, uma argentina, um francês, um português, um sul-africano, duas irmãs...

Nesse momento, estou com um refém aqui dentro. Um velho bispo. Eu o trouxe com o grupo, mas ele recobrou a consciência antes dos outros. Não sei porque, talvez tenha inalado pouco gás.

Como nunca imaginei que isso aconteceria, deixei meus registros em cima da mesa e, como o religioso sabia ler latim, assim que ele ficou consciente e viu que não havia ninguém em casa, ele leu esse diário.

Wert está dormindo no andar de cima e eu fui obrigado a amarrar o bispo. Já o ameacei e disse-lhe que convivesse com o grupo que em breve acordaria e o alertei que se contasse alguma coisa do que sabia, morreria na hora.

Uma parte de mim pensou até mesmo em arrancar-lhe os olhos por ter visto todas as minhas anotações, porém eu não posso fazer isso. Ele é um bispo, um mensageiro de Deus, um pregador católico.

Meu pai sempre nos ensinou a respeitar incondicionalmente alguém que pertença ao sagrado catolicismo. Agora sinto um estranho arrependimento por ver a que ponto chegamos. Desobedecemos nosso pai e viramos assassinos de bispos e vários outros fiéis.

Fazemos isso por medo de morrer. O tabuleiro já matou nossa irmã como aviso e em breve pode ser nós.

E eu me pergunto se esse é mesmo o caminho certo a seguir.

Talvez devesse conversar com Wert sobre isso. Talvez estejamos fazendo tudo errado.

Nosso pai, nosso tio e nosso avô... nenhum deles se atreveu a matar alguém. Arriscaram sua vida, mas não obedeceram ao cruel jogo.

Sei que sou diferente, e muito sangue já espirrou em mim, mas está mesmo certo nos submetermos a isso?

Não posso mais continuar escrevendo, tenho uma missão a cumprir. Preciso alterar a bússola do francês para que ele indique as direções erradas e eles pensem que a cidade é anormal.

Quanto a eles conseguirem sair da cidade não há problema. Se o jogo aceitá-los com o vítimas, será impossível eles fugirem daqui. Porque uma vez que as pessoas viram reféns, elas não saem daqui jamais.

Em breve, todos eles acordarão e precisam estar jogados no meio da rua. Mal eles saberão que um veículo os trouxe de Scacci até aqui e que daqui eles não sairão vivos.

O Bispo continua falando, tirando a minha concentração.

Serei obrigado a machucá-lo para que volte a ficar inconsciente.

E quando Wert acordar, verei se compartilha de minha opinião de que é um verdadeiro holocausto o que estamos fazendo.

Porque da mesma forma que o tabuleiro não perdoa, sei que Deus também não.

* * *

- E esse é o fim - concluiu. - Depois disso ele não escreveu mais. Apesar de o diário ter sido devolvido a Wert, me lembro de cada linha e o relatei exatamente como me recordava. Provavelmente levou vocês até a praça ou espalhou-os pela rua e voltou para casa. Quando Wert percebeu que ele havia se apiedado e estava prestes a fraquejar e arruinar todo o plano, matou o coitado com tiros nas costas.

Ninguém sabia o que dizer. Finalmente, todo o segredo havia sido revelado.

A explicação para os mistérios daquele lugar acabara de ser contada.

Kaninchen encontrava dificuldades para raciocinar direito. Havia até esquecido sua felicidade por ter conseguido trancar Nicole no banheiro antes de escapar da explosão.

Nem mesmo Kan sabia de tudo isso que acabara de ouvir. Wert somente lhe dissera que o que estava escrito no diário era algo secreto e não podia ser lido por ninguém.

E que o esquema havia ruído. Agora todos conheciam as linhas que Willard Tye escrevera com uma antiga caneta tinteiro.

Jacques foi o primeiro a se manifestar:

- Antes de morrer, Willard disse “cuidado com o Kan”. Não sabia qual de nós era, mas alertou-nos caso víssemos esse nome escrito em algum lugar.

- Foi o que aconteceu - lembrou Samantha. - Nós o vimos escrito nas costas de Melina.

- Tudo bem que ele tenha se redimido no final, porém não se esqueçam de que ele também foi um assassino - disse Gary.

- Foi. Um assassino em vão, porque ninguém que ele matou fez as peças se moverem.

- É verdade, Jacques. O homicida que o tabuleiro esperava era Kaninchen. E não poderia ser outra pessoa que não a escolhida pelo jogo.

- Realmente - concordou.

- Mas por que o Kan?

- Bom, acho que é porque Wert o conhecia. Isso criou um vínculo entre os dois e, como a família de Wert tinha ligação com a cidade...

Depois de alguns minutos, o físico se dirigiu a Davis:

- Olhe, desculpe ter feito você acreditar que havia algo estranho na cidade por causa da minha bússola. De fato ela estava quebrada.

- Estava - concordou o advogado. - Contudo, há, sim, algo estranho nesse lugar. Não é sempre que a gente vê um tabuleiro com vida própria e que exige sangue de vez em quando.

Os outros deram uma risadinha sem graça.

- Quer dizer então, que, se não tivéssemos vindo para cá, nós iríamos nos encontrar no mesmo avião? - falou Gary.

- Pois é, de um jeito ou outro íamos acabar nos conhecendo - disse Davis. - Só que seria a caminho de...

- Lisboa - completaram Samantha, Jacques e Gary.

Mais alguns minutos se passaram. Depois de narrar a história do diário, Adam pareceu mais quieto do que o normal.

Quando Samantha se aproximou dele para perguntar o que era, ele pareceu estar esperando justo aquela oportunidade para desabafar:

- Eu já cumpri minha missão. Vim aqui com Nicole para contar-lhes sobre os mistérios da cidade, e já o fiz. Agora eu não deixarei Kaninchen me pegar. Não posso. Preciso honrar a memória de todos que chegaram comigo.

- Mas como vai fazer isso? - indagou Davis, que havia se aproximado com Jacques e Gary.

- Eu vou me matar - respondeu.

- O quê?! Não, Adam, você não pode! - disse o físico, aflito.

- Posso e vou. Se eu cometer suicídio, o tabuleiro não poderá considerar que eu fui assassinado. E eu espero que você - ele moveu seu dedo indicador na direção de cada um dos quatro - se dê muito, muito mal, Kaninchen!

Dito isso, Adam tentou irromper pela porta, mas foi impedido pelos outros que o agarraram. Nem Gary aprovava a decisão dele:

- Ei, camarada, essa não é a solução! Você acha mesmo que vai adiantar alguma coisa dar uma de Romeu?

- Acho! Eu vou arruinar os planos do Kaninchen, nem que seja a última coisa que eu faça!

- Vai ser mesmo a última, se você não usar o bom senso e se acalmar. Nós entendemos que a Nicole...

- Não fale dela! E me solta! Você nunca vai me ter, Kaninchen! NUNCA! - berrou Adam.

Desvencilhando-se de todos, ele conseguiu deixar a casa bege.

E enquanto Samantha, Jacques, Davis e Gary corriam atrás dele pelas velhas ruas de pedra, Adam tirou um punhal bolso e, parando de correr em um impulso, cravou-o em seu próprio peito.

Assim que ele caiu de joelhos, os outros quatro perceberam que não havia mais nada a fazer.

O último sobrevivente de um grupo de trinta e duas pessoas, a última peça preta que não o rei, havia acabado de dar um fim em sua própria vida.

(Continua...)

FELIZ ANO NOVO A TODOS!


Próximo capítulo: Quarta-feira, 02 de janeiro de 2008

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Capítulo 38 - As Revelações do Diário, parte I

Duas horas da tarde. Adam acabara de entrar no banheiro quando os outros ouviram sua voz:

- BOMBA! - berrou, enquanto saia correndo.

- Onde? - perguntou-lhe Nicole, confusa.

- Não importa! Saia daqui imediatamente! - E acrescentou: - Venham todos, venham!

Assim que Adam alcançou a porta da confeitaria, Jacques, Samantha, Davis e Gary já haviam chegado lá para saber o motivo da gritaria.

- Que foi? - perguntou Samantha.

- Depois explico! Saiam já, vão! - E enquanto falava, Adam, abria a porta da confeitaria e se arremessava para fora, seguido pelos outros.

Mesmo na rua, o pupilo de Jacques não descansou e ordenou a todos que se afastassem o máximo da confeitaria. Somente quando estavam a 100 metros do estabelecimento, Adam tomou fôlego e esclareceu:

- Havia um bilhete no banheiro... dizia que às duas horas aquele lugar iria explodir!

O físico olhou no relógio.

- Mas já passam alguns minutos das duas.

- Eu sei. Por isso é que...

CABRUM! O barulho da explosão abafou completamente a voz de Adam e a visão de toda a confeitaria se desmanchando como um castelo de cartas jamais saiu da memória deles.

Novamente por causa de uma bomba, o lugar havia sido desorganizado, só que, dessa vez, para sempre. Não haveria um vestígio sequer de um pacote de bolacha ou um saquinho de tempero.

Os mantimentos agora eram parte dos destroços. Os tijolos das paredes e todos os alimentos se uniram em meio aos escombros.

Foi aí que Adam se deu conta de algo que, devido à pressa e ao desespero, não havia notado momentaneamente.

- Cadê a Nicole? Nicole! NICOLE!

Ele olhava para os lados desesperadamente, mas ela não estava ali; no fundo, sabia qual fora o destino da moça. Mesmo assim, não podia aceitar que o fim dela tivesse sido desse modo, e continuava gritando.

Contudo, a moça não poderia mais responder ao seu chamado: estava soterrada sob o que restou da confeitaria.

Depois que entrou pela primeira vez, Nicole nunca saíra do recinto. Havia morrido lá mesmo, abandonada, vítima de uma explosão cruel e atroz.

Desistindo de procurar sua amiga, Adam olhou para os outros quatro. E cada vez que seu olhar encontrava o dos demais, sua raiva ia aumentando, crescendo incessante e incontrolavelmente.

Um deles havia matado Nicole. Um deles havia assassinado quase trinta pessoas friamente.

Jacques, Davis, Gary, Samantha.

Todos o olhavam com indignação e inocência, no entanto, Adam sabia que entre eles estava o farsante, o homicida de Nicole.

O francês tentou consolá-lo, porém ele não confiava mais em Jacques. Não confiava mais em ninguém.

O único motivo pelo qual Adam não atacou um por um foi porque não era cruel como Kaninchen. Não seria capaz de ferir três inocentes objetivando acometer um só.

- Adam? Adam, me escute! Você sabe por que Nicole não conseguiu sair a tempo? - perguntou o francês.

- Não, não, eu... talvez ela tenha ido ao banheiro pra ver se havia mesmo uma bomba... eu não sei...

- Você conhece um lugar para nos ficarmos? - indagou Samantha.

- Conheço, conheço... - disse, olhando para frente - Tem um esconderijo que você ainda não achou.

- Eu?! - perguntou, confusa.

- Talvez. Me referia a Kaninchen.

- Adam, pare de nos lembrar que o Kan está entre nós. Não faz idéia de como isso é incômodo!

- Incômodo? Não sabe o que é isso, Jacques! Acha que foi cômodo chegar aqui com dezenas de pessoas e ver todos morrerem? Acha que eu me divirto sendo o único sobrevivente entre mais de trinta?

Ninguém retrucou. Eles também sabiam o quanto era difícil ver as pessoas sendo assassinadas pouco a pouco.

Gary, preocupado, questionou:

- Ainda há comida naquelas duas geladeiras que vocês encontraram, certo?

- Infelizmente, não. Éramos em muitos, a comida era pouca... - respondeu Adam.

- E agora? - desesperou-se Samantha.

Não houve resposta. Nenhum deles tinha uma solução

- Daremos um jeito. Sigam-me. - ordenou Adam.

E lá se foram os cinco. Viravam ruas pelas quais se lembravam vagamente de terem passado antes, viam manchas de sangue nos paralelepípedos, e se recordavam dos primeiros dias em que estiveram naquela cidade.

Davis, Gary e a única mulher que restara no grupo iam um pouco atrás e Adam, já mais controlado, conversava com Jacques logo à frente.

- Minutos antes de chegar aqui, estava usando minha luneta - contou Jacques.

-Vendo a aproximação da Proxima Centauri? - indagou Adam.

- Uhum. Você viu?

- Claro, mesmo daqui. Que astrônomo amador perderia esse fenômeno?

Jacques riu.

- É verdade... Então você certamente percebeu que algo extraordinário ocorreu... Eu até saí de minha casa, para avisar ao seu irmão o que estava acontecendo, quando apareci aqui.

- O que exatamente você viu?

- Eu vi uma coisa inexplicável, o fenômeno mais belo... algo tão excêntrico... várias misturas de cores começaram a ocorrer, e explosões e... - fez uma pausa para tomar fôlego. - Você deve ter visto. Mesmo daqui, era visível, não?

- Era, era sim. Mas não o tal espetáculo que você descreve.

- Ah, impossível! Você não deve ter olhado no momento certo - o sorriso de excitação sumia do rosto do físico.

- Eu olhei, Jacques. Vi a aproximação da estrela até quando ela foi se afastando e deixou de ser visível a olho nu.

- No entanto, você não viu as explosões e a fantasia no céu?

- Não. Aquilo não era nada, Jacques.

- Como nada? Era algo inigualável, era...

- Você não viu o que pensa que viu - lamentou Adam.

- O quê? Eu não estava bêbado, se é isso que está insinuando. Não me culpe por algo que você não viu!

- Não estou te culpando. Não é culpa sua.

- Adam, eu não estou entendendo...

- Você não estava bêbado, estava alucinado.

Jacques virou-se para ele e fez uma cara de interrogação.

- Alucinado? Como assim, o que quer dizer? - espantou-se.

- Exatamente o que eu disse. Você estava vendo alucinações, tendo visões irreais, estava tudo em sua mente.

- Você não acredita em mim, não é?

- Não é essa a questão. É que se logo depois de ver o fenômeno você apareceu aqui, provavelmente estava nesse estado de desvario. Primeiro, porque nada demais aconteceu durante a aproximação da estrela; eu sei, pois, como já disse, eu a observei também. E segundo, porque é assim que eles fazem, é assim que chegou aqui.

- Como é?

Quem fez a pergunta desta vez não foi Jacques, foi Gary. Todos agora caminhavam próximos a Adam, para ouvir seu esclarecimento.

- Bom, nós descobrimos isso lendo o diário - ele falou. - O aparecimento de todos aqui na cidade não foi magia ou um truque. Acontece é que eles os drogaram.

- Quê?!- ouviu-se quatro vozes diferentes exclamarem.

- Exatamente. A diferença é que essa tal droga é um gás quase imperceptível, conforme Willard descreve. Diz ele que assim que é inalado, a pessoa começa a ter leves alucinações, sua visão começa a clarear e ela desmaia.

Durante um tempo estranhamente longo, ninguém falou nada. Ainda digeriam a revelação.

- Então... foi assim? - perguntou Samantha, boquiaberta.

- Foi.

- Mas espere... - disse Davis. - Quer dizer que nada do que vimos pouco antes de desmaiarmos foi real?

- Mais ou menos - afirmou Adam. - Digo, as alucinações eram poucas, muita coisa que estava ao seu redor você ainda enxergava. No entanto, o que achou ser algo inacreditável, era efeito do alucinógeno.

“Eu, por exemplo, pensei que meu prédio estava desmoronando! Quando comecei a descer as escadas para sair de lá, tudo ficou branco e eu imaginei que haviam jogado uma bomba, ou algo assim. Tudo mentira.”

A idéia ainda parecia surreal demais para ser aceita.

- Mas como...? Eu não inalei gás algum, não havia ninguém na minha casa!

- Poderia não haver, Samantha, - concordou Adam - porém, horas antes, Willard ou Wert havia instalado lá um pequeno aparelho que exala o tal gás.

- Colocaram na casa de cada um?!

- No diário, ele afirma que sim.

- E onde conseguiram essa droga?

- Diz ele que contrabandearam. Não é um gás muito comercializado, no entanto, alguns batalhões policiais já testam o artefato. Uma química que estava em nosso grupo nos contou que esse tal gás contém entre seus componentes extrato de papoulas soníferas, a mesma planta de onde se extrai o ópio.

Os olhos de Gary ainda refletiam surpresa:

- Tudo isso é tão difícil de acreditar! Parece...

- Mentira - completaram Davis, Samantha e Jacques juntos.

- Eu sei - concordou Adam. - Mas vejam que tudo se encaixa. E outra, vocês estão há mais de duas semanas em uma cidade onde seus amigos são mortos inocentemente e há uma estátua que se mexe sozinha. Ainda acham difícil de acreditar em alguma outra coisa?

- Ah! - exclamou a moça. - E sobre o mistério da estátua, ele diz alguma coisa?

- Diz - respondeu. - Contarei tudo a vocês assim que chegarmos ao nosso destino.

Eles agora caminhavam ocupados rememorando a manhã em que desapareceram, procurando confirmar o que o desalinhado rapaz que ia logo adiante acabara de dizer. E tanto para Gary, quanto para os outros três, não havia dúvidas que toda aquela teoria poderia ser verdade.

Enquanto o físico lamentava não ter existido a maravilha celeste que imaginara, Davis tinha dificuldades em organizar seus pensamentos. Todas as suas dúvidas eram direcionadas para uma só pergunta: Será que a casa dele realmente explodiu, ou foi tudo uma simples ilusão?

- Chegamos - Adam anunciou.

O lugar que iria servir de novo abrigo para eles parecia ser uma casa pequena. Não era como as outras: a única coisa visível era uma porta e um pedaço de parede com uma pintura bege bastante gasta. Ao lado, havia uma construção também com uma cor clara, o que facilitava a camuflagem do local onde morariam agora.

- Se bem que não adianta muito nos escondermos. O assassino está entre nós mesmo - lembrou Adam.

Assim que entraram, constataram que a habitação era bem maior do que imaginavam. Tinha seis cômodos razoavelmente amplos, alguns móveis e muitas cadeiras espalhadas pela sala.

“Sentem-se. Se acomodem.”

Logo que os cinco estavam aconchegados nos assentos de madeira e vime, foi Adam quem falou novamente:

- Bem, precisamos ser rápidos com isso. Acabamos perdendo tempo na outra casa e... - ele não completou. - O fato é que vocês precisam saber a respeito do diário e agora é a hora de eu lhes dizer tudo.

“Primeiramente, preciso alertá-los de que não sabemos como, mas aparentemente algumas páginas foram queimadas por acidente e, por isso, há alguns trechos e algumas páginas que não sabemos o que diziam. Muitas partes foram danificadas, principalmente no começo; no entanto, vocês verão o quanto descobrimos lendo apenas as palavras em latim que sobreviveram às labaredas.”

“Da primeira página, escrita dia 17, não restou praticamente nada, mas não parece que dizia algo muito importante. Ao que parece, ele apenas se apresenta e explica o porquê de chamar seu irmão ou irmã pelo codinome. Infelizmente, não restaram as linhas revelando a verdadeira identidade dessa pessoa.”

“Bem, os registros legíveis começam no dia 18 de Agosto...”

* * *

18 de Agosto

Acabamos de chegar na cidade. Eu e Wert. Faz três dias que nossa irmã morreu, e só aí nós percebemos que não há como escapar. O tabuleiro não perdoa.

Escolhemos uma boa casa, em lugar estratégico, para nos escondermos quando a cidade estiver cheia de gente. Por enquanto a cidade está vazia, mas em breve traremos habitantes de Scacci para cá.

Scacci não fica tão perto, mas Wert - que morou lá durante tanto tempo - a conhece como palma das mãos e isso é vantajoso para nós.

Nada fica muito próximo daqui, só montanhas e campos, por isso raramente alguém descobre essa cidadezinha.

Mesmo assim é um lugar adorável. Talvez eu pense isso somente porque nasci aqui e não tenho muita certeza se vão ser da mesma opinião as pessoas que trarei para cá.

Não sou tão favorável à idéia de matar tanta gente inocente, mas é a minha vida e a de Wert que estão em risco. E o tabuleiro não perdoa.

(Continua...)


Próximo capítulo (segunda parte): Domingo, 30 de dezembro

domingo, 23 de dezembro de 2007

Capítulo 37 - A História Obscura

- Bom, tudo começou cerca de um mês atrás - disse Adam, dando início à narrativa. - Eu estava na cama, quase dormindo, em um prédio na cidade de Scacci. Foi quando vi um clarão, uma luz intensa, e apareci nessa cidade de repente. Pelo que a gente constatou todos vieram mais ou menos do mesmo jeito.

Davis, Samantha, Jacques e Gary deram um sorriso. Acontecera o mesmo com eles.

“O incrível é que a gente chegou mais ou menos junto com umas trinta pessoas! Todas confusas e sem saber onde estávamos. Nós chegamos perto da praça, pelo menos a maioria, e então, como vocês, nós admiramos a estátua e ficamos nos perguntando o que será que tudo aquilo significava.”

- Como sabem que nós vislumbramos a estátua assim que chegamos? - interrompeu Davis. - Estiveram nos espionando?

- Nã... - começou Adam, mas Nicole o impediu de continuar.

- Sim - confessou ela. - Na verdade, sim. Ficamos assustados em saber que mais gente tinha chegado e, por isso, alguns foram espiar vocês...

- Ah! - exclamou Jacques. - Foi então que um do grupo de vocês, o Willard, morreu, não é mesmo?

Adam e Nicole pareceram se assombrar com a questão. A moça se pôs a coçar a nuca, desconfortavelmente, e o rapaz olhou para baixo. Sem responder a indagação, Adam deu de ombros e seguiu contando:

- Bem, como eu ia dizendo, a gente ficou meio perdido, mas no primeiro dia tudo correu normalmente. Até que, naquela noite, três dos nossos morreram. Como vocês bem sabem, pois vivenciaram a mesma situação, ficamos pasmos em saber que havia um assassino na cidade, mas não tomamos nenhuma atitude.

- As peças de xadrez se mexeram? - perguntou o francês.

- Não, Jacques. Nenhuma delas. - E antes que o outro pudesse indagar por quê, Adam fez um gesto para que ele nada dissesse e acrescentou: - Eu vou chegar lá. Enfim, conforme as noites iam passando, mais de nós iam sendo brutalmente mortos. Parecia-nos que havia somente duas pessoas provocando os homicídios.

A informação chocou um pouco alguns que não sabiam haver mais de um assassino na cidade. Mesmo assim, ninguém o interrompeu de novo.

“Infelizmente, nunca vimos o rosto de nenhum deles, somente de relance. Uma semana depois de chegarmos aqui, só restavam vinte e dois de nós. Mesmo assim nenhuma peça do tabuleiro havia se movido um centímetro ainda. Não entendíamos o motivo da chacina, resolvemos, então, nos esconder. Encontramos uma casa que, por pura sorte, tinha duas geladeiras com um pouco de comida dentro. Quanto à água, usávamos a da praça, como vocês.”

“Mais uma semana se passou. Graças a Deus, a estratégia de nos abrigarmos deu certo: naquela segunda semana, somente duas pessoas morreram. Logo que eles nos achavam, mudávamos de casa e, assim, demoravam nos achar novamente.”

- E a comida? Onde arranjavam comida quando saíram do primeiro abrigo? - perguntou Samantha, evidentemente curiosa.

- Voltávamos a cada três dias na casa com as geladeiras para comermos - respondeu Nicole.

- Ficavam durante três dias sem comer?!

Os dois assentiram e Adam voltou a contar sua história:

- Duas semanas depois de nossa chegada, foi a vez de vocês. Assim que ouvimos barulhos fora do comum, fomos averiguar cautelosamente o que era. Foi quando Lin resolveu se infiltrar no grupo de vocês, alegando que ficaria mais protegida do que conosco.

Dessa vez, os quatro não conseguiram se conter: Samantha soltou um gritinho, Davis e Gary arregalaram os olhos e Jacques pôs a mão na boca. Eles até teorizaram a possibilidade da chinesa pertencer ao outro grupo, mas escutar a confirmação da hipótese saindo da boca de Adam era novamente surpreendente. O rapaz prosseguiu:

“Bem, enquanto observávamos vocês três”, disse, apontando para Davis, Samantha e Jacques, “encontrando-se com o resto do grupo, vimos uma discussão acontecer. Não pudemos distinguir por quê, mas eu, que estava entre os que vigiavam vocês, notei o seguinte: primeiro, ouvi vozes ao longe; depois, elas foram se aproximando e vi duas pessoas. Uma delas estava encapuzada e a outra... bem, a outra era Willard.”

Silêncio. Todos pareciam prender a respiração.

“Não sabemos se quem se escondia sob o capuz era homem ou mulher, porém costuma atender pela alcunha de ‘Wert’. Wert, então, perseguiu Willard e, quando pôde, deu vários tiros nas costas do infeliz.”

- Por quê?

- Não sei. Ninguém sabe - Adam olhou para Nicole, e ela confirmou a resposta. - Só sabemos que foi isso que aconteceu.

- Tudo bem, continue - apressou Jacques, ansioso.

- Bom, daí vocês chegaram e tudo mudou. Como Willard tinha morrido, Wert teria que nos assassinar sem ajuda alguma, então...

- Como assim?! - questionaram Samantha, Davis e Jacques em coro.

- Como assim o quê?

- Quer dizer... Willard era o homem que matava vocês? - perguntou Davis.

- Desculpem se esqueci de dizer. É, Willard Tye é quem nos assassinava junto com Wert.

- A propósito - acrescentou Nicole. - Willard era irmão de Wert.

A confeitaria mergulhou em um incômodo silêncio por alguns segundos. As peças do quebra-cabeça pareciam estar todas na mesa e, agora, Adam e Nicole estavam ajudando-os a montá-lo.

- Poxa... bem, vá em frente - sugeriu Jacques.

- O.k. Como eu ia dizendo, Wert agora não tinha mais seu irmão e, sem dúvida, não daria conta de matar os dois grupo sem auxílio. Somando os dois, davam umas trinta e poucas pessoas. Foi aí que Kaninchen apareceu.

Era meio-dia, contudo ninguém prestava atenção no relógio. Será que descobririam algo sobre Kaninchen nos próximos minutos?, pensavam as pessoas que escutavam atentamente a história de Adam.

“Também não sabemos se Kaninchen é homem ou mulher,” ao falar isso, Adam evitou olhar para a direção de Samantha, “mas o fato é que, aparentemente Kan chegou com vocês. Desconhecemos como ou por quê, mas é fato que a partir do dia em que chegaram, alguém começou a matar os membros do nosso grupo e dos seus. Foi quando as peças do xadrez começaram a se mover.”

“Hanz, um alemão que estava em nosso grupo, nos disse que esse codinome significava ‘coelho’ na língua dele.”

Uma ponta de remorso por Edwin transpassou a mente de alguns.

“E... vocês já sabem. Kaninchen começou a matar a gente e, ás vezes três por noite, era eliminado de nosso grupo. E ninguém escapou: morreram o Arthur, o Hanz, o Charles, a Anne, todos! Só restamos nós.”

Dessa vez, Nicole impôs sua voz zombeteira:

- O curioso é que a pessoa que matou quase todos do nosso grupo, está bem na minha frente. Ah, Kaninchen, seu cafajeste... - disse, correndo os olhos por cada um na confeitaria.

Novamente, não houve manifestações.

- Foi isso que vieram nos contar? - questionou Davis.

- Na verdade, não - respondeu Adam. - Isso foi só para vocês entenderem a história. O que viemos contar a vocês é sobre o diário.

- Que diário?

Nicole parecia bastante exausta quando disse:

- Willard, antes de morrer, mantinha um diário. Nele ele escrevia tudo o que se passava durante os dias em que nos perseguia e alguns dias antes também, quando as duas únicas pessoas na cidade eram ele e Wert.

- E vocês leram esse diário - indagou Samantha.

- Lemos - respondeu Nicole com um sorriso. - Estava em latim, mas conhecíamos alguém que sabia traduzir e ele traduziu tudo, tudo, tudo. Desde a primeira letra, até o último ponto.

Kaninchen engoliu em seco, porém ninguém notou.

“Viemos aqui, então, lhes contar o que ele dizia.”

- O que estão esperando então? Comecem logo! - exclamou alguém.

- Agora não - falou Adam, depois de bocejar. - Estamos extremamente cansados, não dormimos há dias e há muito a ser dito a respeito do diário! Deixe-nos descansar um pouco e daqui algumas horas lhes contaremos tudo o que resta.

Todos assentiram. Cinco minutos após, os dois estavam acomodados em um canto da confeitaria.

* * *

- Não, não pode ser o Jacques - cochichou Adam. - Conheço ele há anos, nunca faria uma coisa dessas! Assassinar dezenas de pessoas inocentes a sangue frio? Não, não é o estilo dele...

- Então pode ser aquela mulher - concluiu Nicole.

- A Samantha? Duvido... Eu apostaria nos outros dois.

- No David ou no que não abre a boca?

- É Davis - corrigiu Adam com um leve riso. - E acho que poderia ser qualquer um deles.

- Creio que o que fica calado é mais suspeito. Talvez não diga nada para não se incriminar em um deslize.

- Enfim, o fato é que temos três susp...

- Quatro! Não podemos excluir o Jacques por que confia nele. Nenhum deles parece ser assassino.

- Que seja - sussurrou Adam. - Temos que tomar cuidado com todos eles e sermos muito cautelosos!

- Tem razão, bastante cautelosos... - realçou baixinho, sonolenta.

E os dois se puseram a dormir.

* * *

Kaninchen estava do lado de fora da confeitaria. Não podia sair do campo de vista dos outros, pois levantaria suspeitas. Sentou-se na calçada há alguns minutos e ficara ali refletindo. Ao mesmo tempo em que precisava permanecer na confeitaria, precisava conversar com Wert. Tinha que impedir que os dois intrusos revelassem o conteúdo do diário, só que não conseguia pensar em nada! Estava prestes a se levantar, quando uma voz chamou seu nome.

Kaninchen olhou e viu Wert de pé, perto à parede.

- O que está fazendo aqui?! - assustou-se. - Se alguém te ver...

- Ei, calma! - disse Wert - Ninguém que está lá dentro pode me ver! Ora, você também estava com vontade de falar comigo.

Kaninchen não pôde negar.

- Realmente... mas você não pode aparecer a essa hora perto da confeitaria!

- Relaxa! É só você parar de olhar pra mim e ninguém vai desconfiar que estou aqui.

- Tudo bem, então - concordou, voltando a encarar a paisagem à sua frente.

- E o que eles sabem sobre nós e o diário?

- TUDO!

- Kani, acalme-se e volte a olhar para frente! - advertiu. - O que os dois já contaram?

- Bom, eles estavam falando da história deles. De como eles chegaram aqui e tal... Não revelaram tanta coisa.

- E sobre o diário? - indagou Wert.

- Não disseram nada ainda. Só que foi seu irmão quem o escreveu. Foram dormir e, quando acordarem, os desgraçados pretendem revelar tudo!

- Malditos! Não pode impedi-los?

- E como eu vou fazer isso? Todos estão juntos agora! Todos estão sendo vigiados, estou me sentindo como em uma prisão! Agora vá! Assim que puder, te procurarei para conversarmos.

- Tudo bem, eu vou. Mas antes...

Como não ouviu mais nenhuma palavra, Kaninchen olhou para ver o que estaria fazendo e viu Wert colocar no chão um pequeno embrulho do tamanho de um tijolo.

- O que é isso? - perguntou Kan.

- Você sabe o que é.

- E para quê?

- Ora, é óbvio.

- Você quer que eu exploda a confeitaria? - espantou-se.

- Talvez, se os dois intrusos do outro grupo estiverem dentro dela, poderia ser útil....

- Ei, você enlouqueceu? Isso aqui é a nossa fonte de mantimentos, eu não posso jogar tudo pelos ares!

- Você é quem sabe.

Kaninchen inquietou-se com seus pensamentos enquanto Wert se afastava, sem olhar para trás. A bomba estava ali, ao lado da confeitaria.

Quando, pela segunda vez naquele dia ouviu chamarem seu nome, fez um gesto para a pessoa e se levantou, entrando na confeitaria.

Não sem antes dar, de relance, uma olhada no embrulho e imaginar se não seria aquela a única solução...

(Continua...)

FELIZ NATAL A TODOS!


Próximo capítulo: Quarta-feira, 26 de dezembro

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Capítulo 36 - Preto e Branco

Madrugada. A batida na porta do banheiro não foi ouvida por ninguém que estivesse dormindo.

Edwin estranhou, mas simplesmente abriu a porta. Kaninchen estava do lado de fora.

- Quer usar? - perguntou o primeiro.

- Não. Só quero conversar com você. Aí dentro - disse, indicando o interior do banheiro com a cabeça.

O arquiteto - talvez mais confiante do que deveria, ou, talvez, sentindo os efeitos da sonolência - deixou Kaninchen entrar.

- Estava acordado? - questionou Edwin.

Kaninchen balançou a cabeça afirmativamente.

- Esperando eu levantar para poder falar comigo?

Novamente, Kaninchen assentiu e disse:

- Você é muito esperto.

- Obrigado.

- E eu não gosto de gente assim.

Edwin não retrucou imediatamente.

- Nem eu. Por isso eu não tenho nada contra você.

Cada um podia ouvir o outro respirar. Estavam muito próximos, espremidos naquele pequeno banheiro.

- Por que você mata as pessoas? – indagou Edwin – É Kaninchen, certo?

- Certo. E eu mato por que isso me dá prazer!

- Mentira. Você é uma pessoa fria, que não se importa em sacrificar a vida de alguns com quem não tenha uma forte relação, só que você não gosta de matar. Você mata por alguma recompensa, somente se for mesmo necessário para você suprir seus desejos.

Kaninchen ficou pensando um tempo.

- De arquiteto, virou psiquiatra, é? Que pena: odeio psiquiatras.

E com um ágil golpe, Kaninchen tentou derrubar Edwin no chão com a perna, sem sucesso. O arquiteto foi mais rápido e se defendeu.

Ter servido o exército por seis anos garantiu a ele alguns minutos a mais de vida, mas o final para Edwin não tardou a chegar.

* * *

- Ed? Ed?

- O que aconteceu, Samantha? - perguntou Jacques, ainda sentado no mesmo local em que dormira. Fazia alguns minutos que havia se levantado e há pouco ouvia Samantha gritar incessantemente.

- É o Edwin - ela respondeu - Ele sumiu... desde que eu acordei eu não consigo encontrá-lo!

- Ei, acalme-se - sugeriu o físico. - Eu tenho certeza que ele está bem. Só deve ter ido dar uma volta. Alguma idéia de onde ele esteja?

- Bom... eu ainda não procurei no banheiro, mas acho que se ele estivesse lá teria respondido.

- Experimente bater à porta.

Samantha se dirigiu, então, ao banheiro e socou a porta, com uma agressividade que Jacques considerou desnecessária.

- ED?

Nenhum barulho veio em resposta. Davis também havia acordado e observava a moça ponderar sobre abrir ou não a porta.

- Abra - incentivou Jacques. - Se ele estivesse lá dentro, teria respondido.

A não ser que esteja morto, completou, com tristeza, somente em seus pensamentos.

A arqueóloga segurou o trinco e girou-o. A maçaneta acompanhou a mão de Samantha e girou junto. Um pequeno movimento da porta indicou que ela estava destrancada.

Samantha empurrou-a e olhou para dentro. A cena, parecendo ter saída de um filme de suspense, fez o coração de todos bater ainda mais depressa quando a moça deu um grito.

Tampando a boca com as mãos, ela se afastou enquanto Davis, Jacques e até mesmo Gary vieram ver o que espantara Samantha.

Era Edwin. O arquiteto estava ajoelhado e sua cabeça estava molhada, enfiada dentro do vaso sanitário. Em suas costas eram visíveis seis indícios de facadas e um punhal ainda jazia enfiado no sétimo buraco.

Se ele não houvesse morrido pelas facadas, certamente não teria suportado perder tanto sangue, que agora pintava a maior parte do piso de vermelho.

A moça não conseguia se conter. Gemia e gritava entre seus vários soluços, lutando contra os esforços de Davis para acalmá-la.

A reação de Jacques foi visivelmente mais contida: o francês tirou os seus óculos e algumas poucas lágrimas escorreram pela sua face. Via Edwin como um grande amigo e, de todos, era no qual mais depositava confiança.

Embora na primeira vez em que o grupo o ouviu dizer algo ele tenha voltado algumas suspeitas contra si por ter conhecimento de armas, o arquiteto logo ganhou a amizade da maioria. Entendedor do jogo de xadrez e com aparente capacidade para protegê-los, poucos chegaram a suspeitar de Edwin depois de conviver algum tempo com ele.

Ninguém sabia, mas o arquiteto sentiu que em suas últimas duas semanas aprendeu muito mais sobre a vida do que os outros. Ter algum homicida o perseguindo e morar com a pessoa assassina em questão o lembrava dos tempos de guerra e o fazia jovem novamente.

Para sua infelicidade, porém, toda essa jovialidade havia se perdido junto com o sangue que manchava suas costas.

- Ele foi um grande homem - Jacques murmurou.

O corpo de Edwin ainda permanecia na mesma posição. Nenhum deles ousara tocar no arquiteto. Talvez sentir a frieza de sua pele os faria sofrer ainda mais.

- Há... há... impressões digitais na faca, não há? - perguntou Samantha em um surto - Nós poderíamos identificar o... o... assassino...

- Ah, claro! - desdenhou Gary, em um tom que geralmente usava - Eu vou colocar a faca em um saco plástico e enviar pro meu laboratório de investigação criminal.

Ninguém riu. A moça reconheceu que a afirmação fora absurda e esqueceu o assunto. Nem Davis, nem Jacques, nem Samantha pareciam ouvir agora. Cada um havia mergulhado mais uma vez em sua própria mente.

Com muita dificuldade e pesar, eles tiraram o corpo de Edwin do banheiro e o levaram para a praça. E, finalmente, o arquiteto fora enterrado, bem próximo dos outros: em um lugar onde, petulantemente, as sete peças que restavam no tabuleiro pareciam o observar.

* * *

O relógio marcava onze horas. Jacques, Davis, Samantha e Gary estavam sentados repartindo o último bolo da confeitaria.

A comida, no começo, parecia ilimitada. No entanto, fazia nove dias que eles estavam ali e, quando eles encontraram o estabelecimento, ainda havia treze pessoas no grupo. O fato é que as tortas também já estavam no fim, assim como o pó de café, as caixas de leite e os pães, dos quais só restavam dois.

Mesmo assim, ninguém se preocupava com isso, pois o estoque de outros alimentos ainda era consideravelmente grande. E a maioria da comida ainda continuava espalhada no chão desde o dia em que Anthony e Susan tiveram uma hora para encontrar a chave de desligamento da bomba-relógio.

Quanto à água, ela continuava jorrando na fonte interminável no centro da praça. Todavia, por precaução, eles sempre mantinham a estátua sobre a fonte e só a moviam quando iam encher garrafas de refrigerantes vazias.

Foi então que duas pessoas apareceram à porta. Mesmo os dois não fazendo nenhum ruído, os moradores da confeitaria não demoraram a notá-los.

Aparentemente, Jacques foi o que ficou mais surpreso e exultante, pois foi rapidamente à porta abri-la para os visitantes.

- Ei, espere, Jacques! - alertou Samantha.

Mas era tarde. O físico já não era mais separado dos dois por uma porta de vidro.

- Adam... - disse baixinho.

- Sou eu, Jacques - o homem respondeu, abraçando o outro.

Antes de perguntar qualquer outra coisa, Jacques se dirigiu à jovem ao lado.

- E você, minha querida, como se chama?

- Nicole - respondeu sorrindo.

- Entrem, por favor! Eu nem acredito...

Samantha, Davis e Gary já estavam levantados, prontos para revidar algum ataque, caso tivessem alguma surpresa. Porém, não foi preciso, pois assim que Adam e Nicole foram adentrando a confeitaria - olhando para os lados a todo momento, surpresos com o local - provaram que todos estavam do mesmo lado.

- Oh, meu Deus, Adam... – Jacques não cansava de exclamar. – Pessoal, esse aqui é o Adam. É um grande amigo meu e um físico bastante inteligente, por sinal! Arriscaria até dizer que é o meu pupilo.

Um grande sorriso se abriu sob a espessa barba do jovem. Tinha aproximadamente mesma idade que Davis e como ele não havia encontrado um barbeador, igual ao que os homens usavam na confeitaria, fora obrigado a deixar a barba e o bigode crescerem durante várias semanas. Sua roupa, assim como a de Nicole, estava bem suja, quase em farrapos, combinando com seu cabelo loiro desgrenhado e seus óculos, tortos para a direita.

- E essa - apresentou Jacques - é a Nicole.

O aspecto da moça não era melhor que o do seu companheiro. Era um pouco mais jovem e devia ser uma linda moça se seus negros cabelos em chanel não estivessem malcuidados e sujos de terra e seu corpo não estivesse com tantas feridas e cicatrizes.

Ambos, assim como todos os outros, usavam roupas de dormir.

Depois de cada um se apresentar, Samantha questionou:

- De onde vocês vieram?

- Scacci, como vocês - respondeu Adam.

- E como... - começou a arqueóloga, mas Nicole a interrompeu:

- Kaninchen está entre vocês?

Ninguém respondeu. Nicole e Adam se entreolharam: não esperavam que algum deles se manifestasse.

“Há mais alguém aqui?”

- Não - Jacques respondeu. - Só nós.

- Mas quem são vocês? De onde apareceram?

Foi Adam que respondeu a Samantha.

- Nós éramos do outro grupo. Somos os únicos que sobreviveram.

- Por que só agora vieram até nós? - indagou Jacques.

- Viemos lhes contar a verdade. Vocês precisam saber de tudo, o segredo não poderia morrer conosco.

O clima de expectativa dominou a desconfiança entre eles.

- E onde o grupo de vocês se escondia? Quando vocês chegaram?

- Bem, não há tempo a perder - Adam olhou para Nicole, e esta fez um gesto para que ele prosseguisse. - Vamos lhes contar toda a nossa história.

(Continua...)


Próximo capítulo: Domingo, 23 de dezembro

domingo, 16 de dezembro de 2007

Capítulo 35 - Os Últimos Dois

Triiimm...

Triiimm...

Era um ano atrás. Edwin resmungou alguma coisa. O barulho do telefone o atrapalhava a assistir seu jogo na televisão.

Triiimm...

- MEGAN! - gritou ele da sala. - Você não vai atender a droga do...

- Alô?

Satisfeito que ela tivesse atendido à chamada, Edwin voltou sua atenção ao seu programa. Pelo menos seus olhos visavam à tela da televisão. Sua mente, entretanto, estava em outro lugar.

Tomara que não seja a irmã da Megan, ele pensava, aquela psicopata...

Ele agora se esforçava para lembrar o nome de sua cunhada. A única coisa que se recordara era que o nome começava com a letra M. Percebeu, após alguns minutos, que a tentativa era inútil e decidiu voltar sua atenção novamente ao jogo de rugby.

Um minuto depois, Edwin pensou ter ouvido alguém soluçando.

- Está tudo bem, Meg?

Silêncio. O jogador de rugby da televisão se preparava para uma jogada.

- Está - Megan gritou em resposta, a voz um pouco mais pastosa que normal.

Cinco minutos depois, ela se sentou no sofá, ao lado de Edwin.

- Ed, preciso falar com você - ela disse.

O homem pestanejou.

- Tem que ser agora?

- Tem.

O arquiteto pareceu desapontado, mas mesmo assim se dispôs a ouvir o que sua esposa tinha a dizer.

- Diga.

- Ed... - lágrimas começaram a escorre dos os olhos da mulher. - Eu... Quem ligou foi... foi seu irmão.

Edwin esperou. Preferia não tirar nenhuma conclusão precipitadamente. Mesmo assim, ele não pôde deixar de imaginar se teria algo a ver com a sua mãe.

Megan encarava seu marido carinhosamente.

- Era... era sobre sua mãe, querido. Você sabe que ela estava muito doente e...

- O que houve com ela? – ele a apressou.

Enquanto uma parte do seu cérebro já sabia a resposta, a outra parte insistia em não fazer deduções.

- Ela... ela... - as palavras saíram com dificuldade da boca da mulher - Ela faleceu.

“Sinto muito, querido”, acrescentou em seguida.

O olhar de Edwin estava estático. Não estava preparado para isso.

Sua mãe, logo sua mãe, uma mulher tão forte, tão corajosa. No auge de seus noventa anos, mas que para o arquiteto ainda mantinha a jovialidade de vinte anos atrás.

Por que logo ele havia sido escolhido para sofrer tanto? Por que aquele câncer tinha escolhido justo o corpo de sua mãe para se desenvolver?

O teto parecia querer desabar sobre sua cabeça, definitivamente não estava pronto para uma notícia dessas.

Megan permanecia ao seu lado, chorando: sempre fora muito emotiva. Somente olhava para Edwin, esperando alguma reação.

Todavia, ele não reagiu. Suas pupilas continuaram imóveis e pelo canto do olho, se o homem quisesse, poderia continuar assistindo seu jogo.

Mas ele não queria. Não sabia o que queria. Nem se importava mais.

A pessoa batalhadora que o criara e o ensinara tudo da vida havia partido. Desta vez, para sempre.

Enquanto isso, o jogo de rugby na televisão continuava normalmente. E ao mesmo tempo em que uma sensação de tristeza se apoderava do arquiteto, o comentarista do jogo anunciava que um dos times acabara de marcar três pontos, com um espetacular e admirável Drop Goal...

* * *

Nada estava bem naquele dia. O tempo parecia mais nublado que o normal e o barulho da explosão ainda ressoava no ouvido de alguns.

Eram quase nove horas e a fumaça que encheu o ar de madrugada já havia se dispersado. No entanto, o nobre de gesto de Anthony de se isolar e a determinação de Susan de não abandoná-lo ainda permaneciam vivos na lembrança deles.

Mesmo se conhecendo há duas semanas apenas, um intenso sentimento de paixão parecia ter nascido entre as duas vítimas da mais recente armação de Kaninchen. Eles estavam mortos, mas era indiscutível a todos que Anthony e Susan não sofreram tanto na hora da morte quanto se poderia imaginar.

De qualquer forma, nada os traria de volta e seus corpos continuariam para sempre carbonizados sob os destroços de uma velha casa.

Não existiam muitos vestígios do casal, principalmente porque os escombros dominavam todo o lugar que outrora fora uma casa, e, portanto, não havia o que enterrar.

Mesmo assim, os cinco fizeram questão de ir à praça e demarcar uma pequena sepultura para os dois. Lá, a brisa refrescante das árvores batia no rosto deles e os despertavam para a realidade.

Quatorze dias atrás, dezessete pessoas mantinham ardente a esperança de voltar para casa. Até agora, doze haviam falhado, e a perspectiva de retornar aos seus lares era como uma vela quase no fim.

Aos poucos, cada um ia aceitando seu destino; assim como Anthony fizera minutos antes de morrer.

Jacques, Davis e Edwin se puseram a vislumbrar a estátua; a fantástica estátua. Havia oito peças ainda esculpidas nela; duas peças de cada lado haviam desaparecido.

Samantha chorava baixinho sobre os túmulos e Gary se recostara em uma grande árvore.

- Será que um dia chegaremos a descobrir o verdadeiro mistério do tabuleiro? - indagou Edwin.

- Talvez ele não tenha mistério algum - disse Davis. - Talvez a explicação para isso seja mais simples do que pensamos.

- Ou talvez - opinou Jacques - esse enigma seja mais surpreendente do que jamais imaginaríamos.

Os outros dois concordaram e continuaram olhando para a estátua. Agora que restavam tão poucos, a cidade parecia ter, do nada, ficado vazia, deserta, e todos tentavam adiar a hora de voltar à confeitaria.

Provavelmente por esse motivo, eles se puseram a discutir sobre as outras partes que compunham a estátua. Além do tabuleiro, também eram esculpidas com a mesma pedra as representações de duas pessoas, os jogadores.

Um dos enxadristas era um homem, aparentemente idoso, e sua imagem estava perfeitamente intacta. Já o sexo do seu adversário era difícil de definir, pois deste estava faltando toda a parte da cintura para cima; a única coisa que era possível visualizar desse jogador eram suas pernas.

- Estive pensando... será que esses dois já existiram algum dia? - indagou Jacques.

- Pode ser que ainda existam - foi a sugestão de Davis.

- É, pode ser...

Samantha se aproximou do grupo com os olhos inchados.

- A estátua tem dois mil anos, não foi o que disse da primeira vez que a viu, Sam? - perguntou Edwin à moça.

- Foi... - ela respondeu. - Mas não estou mais tão certa quanto a isso. Essa estátua... ela é a coisa mais estranha que eu já vi! Todo dia as peças da estátua mudam de lugar e eu não tenho explicação para isso.

- Já pensaram que esse tabuleiro pode ser removível e cada noite trocam-no por outro? - sugeriu alguém.

- Não, impossível - afirmou Jacques. - É evidente que ele é fixo à pilastra que o prende ao chão, nem vários homens conseguiriam erguê-la. Eu ainda acho que é algo além da nossa concepção lógica.

- Algo sobrenatural, você quer dizer?

- Exatamente.

- Mas logo você dizendo uma coisa dessas, Jacques? Por que sempre acha que tudo aqui é resultado de algo anormal? Logo você que é físico! - indagou Davis.

- Ora, Davis, aí é que está! Nós, físicos, aprendemos sempre achar uma explicação para tudo. Sempre. Mesmo que não entendamos o fenômeno nós temos a obrigação de explicá-lo e dar-lhe uma equação. O grande problema - ele continuou - é que, até agora, eu não encontrei nenhuma explicação lógica para o que estamos vivendo.

* * *

A noite caíra. Tudo estava em silêncio naquela casa, inclusive seus dois habitantes.

- Acho que já foram - disse o homem após alguns minutos.

- Quem você acha que era? - perguntou a mulher, ainda sussurrando por precaução.

- Não sei. Provavelmente Wert, mas Kaninchen podia ter vindo junto dessa vez também.

O silêncio continuou por mais alguns instantes, até ser quebrado por Nicole.

- Duvido. Kaninchen não sai mais de perto do outro grupo.

Adam deu uma risada forçada à menção dá última palavra.

- Outro grupo? E por acaso há algum grupo além do deles? O que somos agora? Só uma dupla!

- Realmente - assentiu Nicole - mas, caso você já tenha se esquecido, éramos mais de trinta quando chegamos aqui!

- Éramos - repetiu o homem. – Porém, aqueles assassinos desgraçados conseguiram acabar com todos.

- Todos, menos nós.

- É, mas você acha que vai demorar pra eles nos acharem?

Nicole tentou desviar do assunto. Não gostava de pensar nisso:

- Acho que não. E é exatamente por isso que precisamos encontrar logo o outro grupo e contar-lhes toda a verdade.

Adam soltou um muxoxo.

- Eu sei, eu sei, mas nós ainda precisamos pensar em uma estratégia primeiro. Não podemos chegar lá revelando tudo: Kaninchen está entre eles, lembra?

A moça não respondeu imediatamente. Também não gostava da idéia de se infiltrar no grupo de Kaninchen, porém parecia ser a única solução.

- Adam, não podemos adiar mais. Nós somos os únicos sobreviventes do nosso grupo e não podemos deixar o segredo do diário morrer entre nós. Talvez ainda haja esperança pra eles, ou mesmo pra eu e você!

Vendo que o homem se mantinha calado, Nicole continuou:

- Vamos, você sabe que ninguém vai atirar na gente enquanto estivermos com eles. Basta nos mantemos unidos!

- O problema - disse Adam - é que todos sabiam disso, mas, mesmo assim, morreram uns trinta do nosso grupo e uns dez do deles. Kaninchen e Wert são muito espertos, Nicole, precisamos tomar muito cuidado...

A moça concordou com a cabeça.

Lá fora tudo continuava silencioso. Nem mesmo o pio de uma coruja era ouvido. Não havia luz na pequena casa em que os dois estavam e, por isso, eles mal conseguiam ver um ao outro. Somente a fraca chama de uma vela exibia um difuso contorno de suas silhuetas.

- Olha, Adam, não há mais tempo. Que horas são?

O homem aproximou seu relógio da vela para ver as horas. A pergunta lhe parecia um tanto inadequada para o momento, no entanto sabia que a única finalidade de Nicole era se localizar no tempo. Após tantas semanas tentando se adaptar à inquieta rotina daquela cidade e sempre morando em lugares escuros e abafados, acabava-se perdendo completamente a noção do tempo.

- São nove horas - respondeu ele - da noite - acrescentou com um sorriso.

- Bom, vamos agir amanhã de manhã então.

A decisão pareceu pegar Adam de surpresa.

- Já?!

- Já. Não podemos perder tempo, você sabe que...

O movimento de cada um era quase indistinguível naquele breu, mas, mesmo assim, a moça percebeu que o gesto repentino de Adam fora para que ela se calasse.

Quando Nicole silenciou-se, eles puderam ouvir o som de passos ao longe. Por falta de muita opção - a casa tinha apenas três cômodos - eles haviam decidido ficar na sala que era separada da rua por apenas uma parede. Por isso, eles podiam escutar os passos ficando cada vez mais audíveis.

A pessoa que caminhava do lado de fora chegou então em frente ao pequeno lugar onde Adam e Nicole prendiam a respiração. Para a sorte dos dois, a pessoa não parou. Continuou andando pelas ruas de paralelepípedo, esperando ingenuamente encontrar alguma luz acesa ou ouvir alguém conversando.

Assim que os passos se distanciaram, o casal suspirou aliviado, mas permaneceram em silêncio ainda durante um bom tempo.

Foi então que uma forte brisa que adentrou a casa pelas frestas da porta apagou a chama da vela. Contudo, nenhum dos dois se importou.

A única coisa que os afligia naquele momento era como seria o dia de amanhã...

(Continua...)


Próximo capítulo: Quarta-feira, 19 de dezembro